A crise da imprensa – latente e sistêmica no cenário internacional e aguda, estrutural, no Brasil – tem como pano de fundo, no primeiro caso, a tendência à concentração da propriedade dos meios e a perda crescente de credibilidade, e, no caso brasileiro, a falência evidente de um modelo que tem sido, historicamente, a principal forma de expressão do jornalismo como instituição democrática – a empresa familiar. Como em todo processo de transformação, por baixo dessa crise pode estar surgindo uma forma completamente nova, e mais igualitária, de jornalismo.
Já se tratou, neste Observatório, do fenômeno do jornalismo participativo, que se expressa pela confluência de meios e tecnologias que permitem a praticamente qualquer indivíduo registrar eventos por meio de voz, imagens, dados e textos e transmitir esse conteúdo em formatos apropriados para a comunicação de massa [veja remissões abaixo]. Apropriado inicialmente pelos chamados ‘blogueiros’, até aqui mais associados a diletantismo do que à idéia clássica de imprensa, esse fenômeno assume agora o caráter de embrião de uma ruptura, no modo como a mídia tem se apresentado há três séculos.
O American Press Institute, instituição de pesquisas que tem a reputação de abrigar os melhores pensadores sobre o jornalismo nos Estados Unidos, acaba de divulgar um instigante estudo sobre as mudanças em curso em função da crescente participação dos leitores no processo de coleta de notícias. Intitulado ‘WeMedia’ e disponível no endereço (http://www.mediacenter.org/mediacenter/research/wemedia/), o trabalho considera irreversível o advento do jornalismo participativo e questiona a capacidade das empresas de mídia e dos jornalistas de entenderem e se apropriarem dessa tendência.
Inteligência de negócio
O que para alguns analistas e interessados mais conservadores significa apenas um modismo, representa, para os autores do estudo, o limiar de uma idade de ouro do jornalismo – mas não o jornalismo como nós o conhecemos.
Em vez de uma redação organizada e paga por uma empresa familiar ou um grande conglomerado de investidores – que no princípio e no fim das contas é quem define a linha editorial, o humor e os pendores políticos do veículo –, o que se apresenta no horizonte é uma rede de cidadãos informadores conectados a núcleos de edição, onde as notícias serão recebidas, publicadas e organizadas em centros de inteligência para alimentar novas pautas e reportagens mais alentadas. Devolvido à comunidade de origem e ao espectro mais amplo do público, esse material jornalístico estará constantemente sendo submetido a grupos de debate, de cujas digressões resultará um dinâmico processo de realinhamento editorial.
As fontes do noticiário, segundo o ‘WeMedia’, serão cidadãos comuns portadores de telefones celulares, câmeras fotográficas digitais, computadores de mão ou qualquer outro equipamento que permita registrar e transmitir informações. As redações serão caracterizadas basicamente como centros de recepção, triagem rápida, edição imediata e catalogação inteligente.
As empresas, muito diversas das organizações familiares ou dos megaconglomerados atuais, poderão mais propriamente ser definidas como constelações de indivíduos ou de pequenos negócios, podendo até mesmo se apresentar sob a forma jurídica de organizações não-governamentais, cooperativas ou simples associações de interesse comum.
Dependendo da sua capacidade de criar uma inteligência de negócio adequada, esse tipo de organização pode constituir uma forma alternativa de fazer jornalismo ou até mesmo substituir progressivamente a mídia como a conhecemos. Segundo Dale Peskin, co-diretor do Media Center, núcleo de pesquisas do American Press Institute, o fenômeno que alguns especialistas esperam ver consolidado por volta de 2021 pode estar muito mais próximo do que imaginamos.
Tendência saudável
Peskin observa que existem três modos de entender como a sociedade se informa. A primeira versão considera que o público é essencialmente crédulo e vai ler, ouvir ou assistir qualquer coisa que se coloque à sua frente. Essa é a tendência que se observa nos jornais ditos populares e seus correspondentes no rádio e na televisão.
A segunda versão faz crer que o público precisa de um intermediário que lhe diga o que é bom, relevante ou significativo entre os eventos. É o modo como a chamada grande imprensa compreende sua relação com os leitores, ouvintes ou telespectadores – uma relação de mentor e tutelado.
O terceiro modo de ver a questão tem como pressuposto que o público é inteligente e lúcido – dados os meios, ele próprio pode discriminar os fatos por si mesmo e encontrar sua própria versão da verdade. Essa, na opinião dos autores do estudo, é a forma como a imprensa participativa irá se relacionar com a sociedade.
Dan Gilmor, editor do San José Mercury News, jornal da Califórnia que foi um dos pioneiros na internet, é praticante entusiasta desse processo há quase quatro anos, quando começou a construir uma relação de parceria com os leitores de sua coluna sobre informática. Por acaso, seus leitores eram também, muitas vezes, as fontes das notícias que publicava, e ele afirma nunca haver se sentido humilhado por ter sido corrigido por algum deles. Pelo contrário, essa relação evoluiu até se consolidar numa rede de leitores e informadores que se ampliou e forma até hoje um dos mais influentes grupos de opinião no setor de tecnologia da informação.
Gilmor considera o jornalismo participativo uma tendência saudável, ‘apesar do potencial para produzir rupturas’. Pode-se dizer que a tendência é saudável justamente por isso, pelo fato de democratizar a mídia, como afirmam William Kovach e Thomas Rosenstiel, autores do livro The Elements of Journalism, também citados no estudo do American Press Institute [o livro de Kovach e Rosenstiel foi editado no Brasil em 2003, pela Geração Editorial, com o título Os elementos do jornalismo – O que os jornalistas devem saber e o público exigir].
O fim do achismo
Como jornalista, o caro observador se sentiria confortável tendo de se submeter ao julgamento de leitores que dominam com mais intimidade o tema de uma reportagem – diretamente, como se estivessem todos na redação? Por outro lado, como o profissional de imprensa veria a colocação em termos mais precisos de expressões como objetividade, isenção, distanciamento e veracidade, no caso pela exposição plena de cada trabalho seu, não apenas na versão final, mas em todos os processos de coleta, análise e publicação?
Para quem já vive essa realidade, como o coreano Oh Yeon-ho, editor e fundador do Ohmynews.com, a mais relevante experiência de jornalismo participativo, trata-se de um privilégio. Consultado pelos autores do estudo, Yeon-ho disse acreditar que está contribuindo para a democratização da imprensa pela redistribuição do controle sobre os meios de informação. ‘Com o Omninews, nós pretendemos dar adeus ao jornalismo do século 20, no qual as apenas viam as coisas pelos olhos da mídia conservadora’, observou.
Para os donos da mídia, alguns temores. Primeiro, pela vantagem que pode significar para a imprensa participativa a diferença mais óbvia entre os dois modelos de negócio, em termos de estrutura e organização. A mídia tradicional é composta por organizações hierárquicas construídas para o comércio. Seus modelos de negócio são focalizados em distribuir de forma ampla e bem direcionada o conteúdo informativo e cobrar pela exposição de seu público à publicidade – e pela possibilidade de fazer convergir eventuais interesses de negócio (anúncios classificados) entre indivíduos desse público. Ela valoriza o fluxo editorial rigorosamente controlado, lucratividade e uma versão muito própria do que sejam os interesses coletivos.
O jornalismo participativo, segundo observam os analistas do American Press Institute, é criado por comunidades integradas em redes, que dão prioridade a relacionamento, a colaboração e o igualitarismo em vez da lucratividade. As experiências bem-sucedidas na Coréia e no Japão indicam que também se pode alcançar sustentabilidade por esse caminho alternativo e – considera este observador – potencialmente mais gratificante para os jornalistas.
O joio e o trigo
Clay Shirky, professor-adjunto na Universidade de Nova York, também consultado para elaboração do estudo sobre efeitos sociais e econômicos das tecnologias da internet, comenta que há uma diferença fundamental nos processos de publicação entre a mídia tradicional e a mídia emergente. ‘A ordem das coisas na mídia tradicional é: filtre, depois publique; a ordem nas comunidades é: publique, depois filtre. Na mídia tradicional, os autores submetem seus trabalhos antes, para serem editados ou rejeitados. Na comunidade, os participantes dizem o que têm a dizer e o bom é separado do medíocre após o fato’, diz Shirky.
Essencialmente, isso não quer dizer que irá desaparecer a função do editor ou do repórter. O que se observa é que haverá uma versão crua dos eventos, disponível ao discernimento do público, e outras versões, elaboradas segundo progressivas participações de jornalistas e outros profissionais, num processo de interação que poderá conduzir o leitor a níveis variados de entendimento de um mesmo tema.
Como se se pudesse ter, numa mesma seqüência, uma versão primária, diretamente da fonte, em tempo real de um fato testemunhado, seguida de uma versão diária, com repercussões do fato, e outra semanal, mais elaborada, até uma versão enciclopédica, que contenha a inserção do fato num contexto histórico. Isso tudo em formatos variados que possam conter desde simples relatos verbais até imagens, sons, análises mais ou menos sofisticadas, num espectro que se define pela relevância de cada fato ou evento.
O jornalista deverá continuar fazendo seu trabalho, mas de uma forma muito diferente. Basicamente, ele poderá criar sua rede de informadores e terá mais respaldo para fazer suas escolhas. O retorno constante e permanente dos leitores-informadores o ajudará a selecionar ‘o bom do medíocre’ e o factual do relevante. Deverá haver, portanto, menos espaço para o ‘achismo’ e para a manipulação.
******
Jornalista