O tema ainda não está sendo levado a sério pela Associação Brasileira de Anunciantes, mas algumas agências de marketing direto já fazem circular mensagens via internet espalhando, como um vírus, um verdadeiro epitáfio para a mídia como a conhecemos: a comunicação de massa, onde se insere o negócio da imprensa, está em processo de decomposição, diz o texto. Em seu lugar, cresce o movimento pela convergência de interesses, que induz ao predomínio da comunicação dirigida, onde tendem a se concentrar os públicos de maior valor para os agentes do mercado e os donos de conteúdos.
Uma nota do site BlueBus (www.bluebus.com.br) dava conta, semana passada, de que agências e anunciantes estão incrementando sua participação na produção de conteúdo para televisão. Só na Inglaterra, foram encomendados ou estão em fase de produção pelo menos 20 programas neste semestre. Programas como o Big Brother Brasil, levado a milhões de lares brasileiros pela Rede Globo, já embutem o conceito, e os resultados estimulam uma radicalização desse processo. Considerados como centro de custo, os dirigentes de núcleos jornalísticos têm pouca força ao argumentar contra essa onda que tende a contaminar as melhores redações.
No Brasil, o chamado branded content marketing ainda é uma operação que nasce em duas partes – o núcleo de criação e o departamento comercial ou de marketing –, mas o sucesso acelerado do modelo, pela lógica de negócio, deverá rapidamente conduzir à concentração das decisões no departamento comercial, com as áreas de criação de conteúdo e produção simplesmente realizando a encomenda. No fim do processo, sai do forno um produto – no formato novela, reality show ou até mesmo ‘reportagem especial’ ou ‘documentário’ –, cujo conteúdo terá sido, desde a origem, definido conforme o interesse de uma marca, um setor da economia ou um projeto específico.
Agregadores de valor
O sistema guarda alguma semelhança com o que antigamente se costumava chamar simplesmente de picaretagem, mas agora renasce fundado em técnicas muito mais eficientes, montado em tecnologia de ponta e respaldado pelos mais eficientes instrumentos de pesquisa. Além disso, encontra o tecido ético das empresas de comunicação esgarçado pela mais grave e duradoura crise de sua história. Para agravar, uma geração de profissionais aterrorizada pelo fantasma da exclusão pura e simples.
Para ter uma idéia do alcance desse processo, e suas conseqüências sobre a opinião pública – em cuja defesa, em última instância, marcamos nossos encontros semanais neste Observatório –, basta observar que um grupo de indivíduos ou empresas pode combinar uma série de intervenções em múltiplas mídias, tornando relevante certo posicionamento a respeito de absolutamente qualquer assunto. Os melhores planejadores de marketing juntam-se aos mais criativos autores de conteúdos e, ativando as redes poderosas de relacionamento que a tecnologia torna disponíveis, colocam na televisão, rádio e internet um jornalista de prestígio reconhecido a conduzir comunicados de interesse específico, dissimulado sob formato editorial.
A rigor, uma marca, idéia ou projeto tem mais poder quando parte da convergência, do que – como tem ocorrido até então – quando alcança a mídia pelos veios naturais, com toda sua diversidade, entrando no risco para se impor ou para ser rejeitada ou ignorada. O direcionamento de conteúdo inverte o jogo. A partir de agora, uma idéia, marca ou projeto dificilmente sairá do computador do interessado sem que sejam cuidadosamente planejados os formatos, os meios, as tecnologias e o tempo de exposição.
Idéia, marca ou projeto podem ser levados à opinião pública por meio de eventos, aparições ao vivo, bancos de dados, filmes, música, patrocínio esportivo, videogames ou pela voz ou manifestação de personalidades – ou pela combinação de alguns ou todos. Os meios incluem internet, telefones celulares, sistemas de distribuição por satélite ou cabo, televisão, rádio, computadores de mão, redes corporativas e também pela mídia tradicional não interativa. Os conteúdos escapam dos chamados players tradicionais e passam a ser definidos por provedores de soluções tecnológicas, planejadores de mídia, empresas de pesquisa, departamentos comerciais, agentes de promoção de vendas, distribuidores de produtos ou serviços, agências de publicidade e de relações públicas.
Jornalistas estão sendo rapidamente incluídos nesses processos, pelo valor de credibilidade que ainda agregam às mensagens.
Resultados pontuais
Nascida no bojo da chamada comunicação integrada – uma alternativa adotada por muitos anunciantes como solução para a redução dos custos de publicidade –, essa prática estava até recentemente restrita aos temas relacionados a produtos de consumo. Nas eleições presidenciais americanas deste ano, já se apresenta como um dos mais fortes componentes do processo de convencimento a respeito de programas de governo.
Observe-se, por exemplo, o volume absolutamente desigual de conteúdo jornalístico sobre a exportação de empregos, induzido por agências de comunicação – e engolido pela mídia – nas duas últimas semanas. A partir desse ponto, o céu é o limite. Algumas publicações tidas como independentes já tiram edições inteiras sob o patrocínio de três ou quatro empresas cujos interesses se entrelaçam, sem advertir o leitor de que o conteúdo pode estar contaminado por esses interesses.
Não se pode afirmar, ainda, que o processo será bom ou ruim para a sociedade, e que espécie de imprensa haverá de surgir dessa tendência. É possível que venhamos a ter uma imprensa dirigida, apropriada por empresas ou setores do mundo dos negócios, e uma outra imprensa mais independente, menos expressiva, embrionária de um sistema realmente voltado ao interesse público. Como um divisor de águas, por exemplo, entre os canais do tipo shoptime e canais de televisão pública.
Pode-se, no entanto, apostar que se trata de um verdadeiro epitáfio para certa imprensa que vem investindo num jornalismo utilitário e ruidoso, que trocou a reflexão pelo resultado pontual de audiência ou de venda em banca. Como em todo bioma, o ambiente da comunicação começa a reagir à apropriação, por certa imprensa, de técnicas mais adequadas a marqueteiros e promotores de venda.
Agora vem o troco.
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Jornalista