Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Armani é moda e também conteúdo

Para a Folha de S.Paulo, o assunto mais importante da cidade no último sábado (23/10) foi o aumento no preço das garotas de programa graças à coincidência de três grandes eventos com forte apelo masculino – Fórmula 1, Salão do Automóvel e Boat Show.

A ‘inflação’ na tabela das moçoilas mereceu a capa do caderno ‘Cotidiano’ e mais uma página interna. É a consagração do jornalismo leve, jovem, moderno.

Se tudo correr bem, o novo Estado de S.Paulo chegará lá. É o destino das ‘plásticas rejuvenescedoras’ dos grandes jornalões e revistões. Foi assim com a Folha nos anos 1980 e, com toda a certeza, será assim com todos aqueles que imaginam a atualidade como exibição de modas & manias e reduzem o jornalismo à condição de seus divulgadores.

Nada contra o lazer e o prazer, todo jornalismo é ‘jornalismo de serviço’, mas quando o clássico e transcendental Estadão, uma semana depois da sua reforma, decide priorizar a ‘febre’ dos bistrôs como a matéria principal do caderno local (‘Metrópole’, domingo, 24/10) então percebe-se a extensão do toque Armani no jornalismo brasileiro.

Concorrência confortável

Jornais e revistas devem mudar, adaptar-se. Se as circunstâncias se alteram continuamente, alteram-se também aqueles que refletem as circunstâncias. E assim sobrevivem, mudando e disfarçando as mudanças. Prova disso são os quase imperceptíveis arranjos na aparência da Folha em seguida à metamorfose do concorrente. Ficou mais arejada, menos atrapalhada – mais clássica. Não perderá um único leitor e ainda pode ganhar aqueles que, porventura, não se acostumaram com o sacolejo no Estadão.

Imperioso retornar ao que aconteceu com o Jornal do Brasil em 1956, quando M.F. do Nascimento Brito decidiu transformar o ‘jornal das cozinheiras’ num veículo de prestígio. Chamou o jornalista Odylo Costa, filho, que, por sua vez, convocou o escultor-designer Amílcar de Castro e uma brilhante equipe de jornalistas que começaram uma ‘lenta, gradual e segura’ eliminação dos anúncios classificados que ocupavam quase toda a primeira página.

Meses depois, os classificados estavam reduzidos a um ‘L’ simbólico na primeira página, mas ao longo de pelo menos quatro décadas o jornal manteve-se como campeão dos pequenos anúncios. Não espantou seu público tradicional e foi em busca de outros.

A decisão de mudar o Estadão – uma das mais audaciosas desde a transformação da Folha em 1975, dado o porte do paciente – não foi acidental. Faz parte de um processo iniciado a partir da criação da ANJ (Associação Nacional de Jornais), em 1979, quando antigos inimigos figadais passaram não apenas a conviver numa entidade criada para defender seus interesses de classe como também a comportar-se coletivamente.

A intensa troca de experiências entre os associados, além de eliminar a diversidade, estabeleceu um paradigma de concorrência muito confortável – sem exacerbações nem riscos. Quando no início dos anos 1990 as empresas começaram a cortar o número de correspondentes no exterior e o espaço dedicado ao noticiário internacional, todos embarcaram na mesma canoa certos de que não haveria surpresas e ficariam iguais.

Mundos e fundos

Quando a ANJ se deixou seduzir pela fórmula de ‘jornalismo de mercado’ desenvolvida pela Universidade de Navarra – e importou os consultores internacionais a ela ligados –, a imprensa diária brasileira foi varrida por uma febre de face liftings que homogeneizaram não apenas as aparências, mas as identidades (a Folha foi a única a resistir).

O resultado deste culto à cosmética foi a banalização das mudanças de visual. A dificílima e penosa decisão de colocar em risco a fidelidade do leitor por meio de reformas drásticas tornou-se rotineira: os veículos passaram a trocar de cara como trocavam de chefes de redação ou de orientação política. Às favas o leitor tradicional, o que importava eram os novos leitores – estava oficializada a era das migrações rápidas, as segmentações e o regime de troca de público.

Os tais consultores queriam ‘modernidade’ para garantir o negócio da ‘revolução permanente’. Esqueciam que o jornalismo é canônico, as mudanças de conteúdo em cada edição criam a necessidade de oferecer arcabouços sólidos e estáveis.

Nessa antropofagia foram ajudados pelos agentes do mercado publicitário minimamente interessados na preservação dos veículos. São eles que, nesses momentos, impõem aos jornais os esdrúxulos formatos de anúncios que conseguem a dupla façanha de prejudicar a mensagem do anunciante e passar ao largo da percepção do leitor.

São estes agentes do mercado os avalistas da miragem dos ‘novos tempos-nova cara’. Prometem mundos e fundos e depois vão cuidar de novas metamorfoses.

A direção do Estado de S.Paulo certamente está atenta a esses desdobramentos e perigos. Já passou por sustos piores.