Quais são as possibilidades reais de vermos nascer, num prazo de dez a vinte anos, uma imprensa completamente nova, integralmente montada sobre recursos digitais e absolutamente aberta à participação pública? A resposta a essa questão demanda uma análise do estado de vanguarda da tecnologia digital embarcada na comunicação, mas depende essencialmente de uma visão realista das circunstâncias sociais, políticas e econômicas que estiverem em vigor nos próximos anos.
Quanto à tecnologia, é fácil afirmar que há condições muito favoráveis ao rápido desenvolvimento e consolidação de formas inovadoras de seleção e distribuição de notícias, tão acessíveis que poderão ser controladas por grupos de pessoas sem necessidade de grandes capitais. A maior parte desses recursos já está disponível, a custo muito baixo, como resultado do amplo movimento pelo software livre.
Esse aspecto da questão está bem analisado no livro A Catedral e o Bazar, de Eric Raymond, que conta a história do Linux e o triunfo do software livre. A partir dessa obra, se convencionou chamar de ‘catedral’ o complexo de grandes empresas que se construíram sobre o negócio do software fechado, e se deu o nome de ‘bazar’ ao esforço de desenvolvimento do sistema operacional idealizado por Linus Benedict Torvalds, que ousou enfrentar o Windows da poderosa Microsoft e liderar uma comunidade de milhares de programadores sem vínculo de negócio, comunicando-se apenas pela internet e quase sempre sem remuneração financeira.
Direito pouco nobre
O caçula dessa rede de criadores é o browser Firefox (www.mozilla.org/products/firefox/), de distribuição gratuita, que cresce exponencialmente e pode se tornar, em médio prazo, um novo desafio para o Internet Explorer de Bill Gates.
Mas, como em tudo na era da rede virtual, o aspecto tecnológico não deve ser analisado de forma isolada. Assim como o software livre é considerado a subversão do sistema representado pelas grandes empresas, o que dele pode resultar, como mídia, também representa o desordenamento de um sistema fundado sobre a propriedade dos veículos institucionais da opinião pública.
Por trás dessa potencial ruptura há muito mais do que tecnologia ou regulamentações. A rigor, o que anuncia o bazar dos livres criadores de conhecimento tecnológico é um ambiente em que também será livre a propriedade dos canais de mão dupla por onde deverão trafegar a informação e a opinião pública. Isso equivale a dizer que, se esse processo representa uma tendência de longo curso, estamos no limiar de uma espantosa ruptura no significado de expressões como mídia, imprensa, jornalismo e congêneres.
Isso nos coloca no olho do outro furacão que se levanta no horizonte, que podemos definir como as circunstâncias sociais, políticas e econômicas que estarão em vigor nos próximos anos. O soluço de conservadorismo que tem sua origem no eleitorado norte-americano guarda com nosso tema uma relação visceral: no centro desse retrocesso está um governo que tem oferecido grande contribuição ao desmanche da imprensa tradicional e, por conseguinte – e natural necessidade humana – estimula a busca por mídias alternativas.
À medida em que o governo de George W. Bush demonstra seu desprezo pela imprensa tradicional e independente à sua maneira, estabelecendo com os grandes conglomerados da mídia uma relação de cumplicidade mais do que suspeita, com certeza se acelera o processo de demolição de todo o sistema, e se fortalecem os fundamentos de uma mídia inovadora, em tudo oposta ao que historicamente conhecemos como imprensa.
Da mesma forma que a monarquia, bem representada pela família real britânica, se transfere progressivamente do noticiário político e econômico para as seções de entretenimento da mídia, o processo de desautorização da mídia tradicional, por iniciativa do maior poder constituído do planeta, pode estar mandando para o museu da História o sistema de propriedade dos meios baseado num direito hereditário que pouco tem de nobre.
Vícios da imprensa
Convém lembrar que não são apenas os falcões hospedados na Casa Branca que concorrem para a desmoralização da imprensa tradicional. Também as grandes empresas, na medida em que se associam a proprietários da mídia e usam seu poder para influenciar conteúdos jornalísticos, contribuem para a aceleração desse processo.
Diriam os discordantes que tudo isso embala uma rematada bobagem, uma vez que o que temos presenciado, até aqui, é a proliferação de blogs editados por jovens ignorantes e mocinhas movidas a energia sexual, e que daí não tem perigo de sair imprensa que seja tida como tal. Pode-se lembrar, nesse caso, que a própria internet, em suas origens, era abrigo de nerds e outros desconexos sociais, muitos dos quais resistiam à simplificação dos procedimentos que poderiam promover a democratização das novas tecnologias.
Da mesma forma, lembremo-nos de que os jornalistas mais maduros, aqueles que, em teoria, estariam habilitados a colher e organizar o conteúdo da nova mídia, são em geral avessos à experimentação tecnológica. Mas há uma geração de profissionais educados no ambiente digital, que chegou a aprender o que é bom jornalismo e também se sente confortável no trato da tecnologia.
Por último, mas longe da pretensão de esgotar o tema, podemos ponderar que os excessos da mídia, ao promover o culto da celebridade, contaminam o público e estabelecem a hipermediação como condição de relacionamento social. Interatividade intensa gera mais necessidade de informação, que realimenta a interatividade, a qual só pode ser saciada pelos meios digitais.
Assim, os vícios da imprensa que existe ajudam a consolidar a imprensa que virá a existir. O ponto de ruptura pode estar mais próximo do que imaginamos.
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Jornalista