Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falta diversidade

Um dos aspectos mais perversos da crise da mídia é a criação de um círculo vicioso, que nasce no perfil conservador da grande maioria dos gestores e editores de empresas de comunicação e se realimenta na busca quase obsessiva de homogeneidade, que dificulta o desenvolvimento de soluções inovadoras, desestimula a criatividade e realimenta o conservadorismo pela falta de mentes contestadoras em todo o sistema. Essa realidade não se restringe ao setor de mídia, mas é nele que parece ter um efeito mais notável, em função do tipo de produto que a mídia entrega à sociedade.

O perfil conservador é perceptível na leitura dos jornais, na audição dos programas jornalísticos do rádio e na observação dos noticiários da televisão. Mas é dentro das redações, no convívio com os profissionais e seus processos – mais do que indiretamente, na observação do resultado de seu trabalho – que se pode notar claramente como aos poucos fomos nos enredando num sistema auto-referente, progressivamente impermeável a influências externas e menos sensível a oportunidades de mudança e renovação. Num momento em que, mergulhada em crise, a mídia necessita de muita inovação, essa característica pode se revelar desastrosa.

Quando foram feitos os primeiros diagnósticos apontando mudanças no comportamento do público e a necessidade de modernizar a gestão das empresas de comunicação no Brasil, no final dos anos 1980, todo o ambiente corporativo vivia a agitada febre da reengenharia, tida como o apanágio para todos os males. Consultores educados nos setores financeiro e industrial pousaram nas redações de jornais, realizaram extensos levantamentos, enriqueceram seus currículos e deixaram para trás, na maior parte dos casos, redações desfiguradas e vícios administrativos difíceis de erradicar. O pior deles: gestão pelo corte de custos. O mais exótico: um sistema de avaliação de produtividade baseado no número de linhas escrito por hora de trabalho, do qual já se tratou neste Observatório. O mais nocivo, no longo prazo: uma espécie de conservadorismo bem-informado, cínico e alienado.

Sempre no exterior

O processo de juvenilização que varreu as empresas, a partir dos anos 1990, foi motivado pela busca de mentalidades mais aptas a adotar os novos valores – mais pragmatismo para lidar com a função utilitária dos jornais, mais agilidade no uso dos equipamentos de informática e programas de edição, menos tendência a questionamentos. As empresas, de fato, conseguiram mais produtividade no início dessa fase, mas a um custo que se revelou altíssimo para o negócio da imprensa: queda da qualidade, rupturas culturais importantes, esvaziamento ideológico e perda de capacitações. Constatou-se, por exemplo, que não havia sobrado redator ou repórter qualificado o suficiente para escrever sobre diplomacia ou para entender a diferença entre indiciamento e condenação sem ter de consultar uma fonte do Judiciário.

Foi nesse cenário que se viu minguarem as carteiras de assinantes e que se observou o fenômeno do desaparecimento de milhões de leitores. No Brasil o jornal que mais vendia chegou a anunciar tiragens de 1,2 milhão de exemplares aos domingos. Seis anos depois, com tiragens que penosamente chegam aos 400 mil exemplares, seus gestores não sabem o que aconteceu com seu público.

A cada semana, a partir de 1996, centenas de milhares de pessoas passaram a achar irrelevante ler jornais. Até agora, nenhuma entidade do setor apresentou um diagnóstico que tenha colocado a causa dessa perda dentro das próprias paredes das empresas de comunicação. A razão da crise está sempre no mundo exterior, em problemas macroeconômicos, decisões de governo, crises internacionais.

Caros demais

O choque tecnológico de meados da década de 1990 anunciou grandes oportunidades, mas, no ambiente conservador com que foi recebido nas empresas de comunicação, acabou por se constituir em novo fator de crise. A visão equivocada sobre o significado da nova tecnologia fez com que muitos abandonassem seus paradigmas para assumir literalmente a tese segundo a qual deveriam transformar-se em ‘turbinas de informação’. Na verdade, uma má interpretação impediu que se entendesse que a necessidade de equipar-se uma redação para lidar com volumes maciços de informação em tempo real não significava a perda da capacidade de aprofundar-se em temas importantes.

Mas o que houve de fato foi que abdicou-se da capacidade de refletir os fatos e oferecer ao público análises mais consistentes, em troca da velocidade, que é apenas uma, e não a mais importante, vantagem oferecida pela informatização. Também se perdeu a acuidade no uso da linguagem, e resvalou-se para o lugar-comum.

Muitos erros gramaticais depois, chegou-se afinal ao consenso de que seria conveniente equilibrar os investimentos e substituir o deslumbramento com recursos tecnológicos por políticas de valorização dos recursos humanos. Ao mesmo tempo em que eram substituídos os equipamentos de informática centralizados, com terminais ‘burros’, por sistemas editoriais configurados como ilhas de edição autônomas integradas, constatou-se que era preciso formar um novo tipo de jornalista.

E o erro se repetiu, desta vez pela predominância de modelos mentais conservadores, que naturalmente só se sentem confortáveis em ambientes homogêneos, com baixo risco de contestações. Os especialistas extremados que se haviam transformado em estrelas do jornalismo já não apresentavam um desempenho satisfatório, tornavam-se caros demais para o novo perfil de custos, e era preciso formar profissionais capazes de compreender sua atividade de forma global e de agir nas várias etapas dos processos de coleta e tratamento da notícia.

Brilha o covarde

No entanto, um vício havia se instalado na alma da imprensa nacional: uma nova espécie de ‘esquerdismo’ sem estofo ideológico, uma doença infantil que se manifesta pelo desprezo ou ignorância real em relação à História e ao papel histórico da Imprensa, e por uma necessidade visceral de parecer crítico em relação a todas as instituições e todas as situações. Esse perfil foi se impondo às redações, e em pouco menos de uma década passamos a ter um jornalismo que dispara para todos os lados, que atua como se não tivesse qualquer relação com a sociedade na qual está inserido.

Alguns gestores, e até donos de empresas jornalísticas, já se perguntam se não estaria na hora de reverter o quadro que se formou nas redações quando se colocou em prática o velho axioma segundo o qual é preciso ‘satisfazer o cliente’. A sociedade moderna é marcada pelo ‘individualismo egoísta’, como observa, grosso modo, Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de São Paulo. Uma vez que se disponha a atender e até justificar as demandas desse leitor eminentemente individualista e alienado em relação à sociedade que o cerca, a imprensa acaba por abandonar suas responsabilidade social mais intrínseca.

É nesse ambiente que brilha o profissional conservador, covarde e alienado, sem estofo ideológico e deseducado em relação ao significado mais profundo do jornalismo. Em torno dele se constituíram círculos homogêneos de conservadorismo, pessimismo, descrença e cinismo. Para sair da crise, a imprensa precisa não apenas de ajuda do governo para sanear suas contas. Precisa reaprender que o senso crítico deve começar dentro de casa, pela constatação de que cada notícia carrega certo grau de responsabilidade, que aumenta proporcionalmente à credibilidade do veículo. A imprensa precisa refazer seu ecossistema com espécimes que saibam dizer não, para lidar naturalmente com suas idiossincrasias. A imprensa precisa de diversidade.

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Jornalista