Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa de esquerda com ou sem esquerda?

Na edição passada do OI, uma imprensa que seja corajosamente inovadora, progressista, cientificista e humanista, capaz de expor os pleitos e anseios da grande massa da população foi o tema do artigo do jornalista Luciano Martins Costa [ver remissão abaixo]. Essa ‘imprensa de esquerda’, como foi chamada por Marco Antonio Rocha em sua coluna ‘Economia & Negócios’ do Estado de S.Paulo (3/10), é a grande ausente no panorama atual político, social, econômico, tecnológico e das comunicações. Sim, porque em todas as áreas há um vazio da mídia das idéias novas, corajosas, inovadoras ou que permitam a discussão de projetos mais audaciosos. Esta seria a imprensa de vanguarda, como foi a revista Diretrizes, no pós-guerra, e a imprensa alternativa representada pelo Pasquim, na época da ditadura.

Quando se fala, entretanto, em O Pasquim, muita gente diz que não há espaço para uma publicação como este foi, não levando em consideração sequer que a imprensa alternativa da ditadura é apenas um referencial, apenas uma idéia de como seria uma publicação com público diferenciado, com revelações inéditas, com repercussão de grande imprensa. No fundo, seria reunir grandes articulistas pela credibilidade ou pela objetividade e profundeza das análises, editores com sensibilidade para articular um conjunto de assuntos que dariam conteúdo acima das expectativas gerais sobre a publicação e pautas que poderiam transformar cada assunto, na perspectiva proposta pelo veículo, em detalhes que viriam a causar surpresa positiva nos leitores. A diferença entre O Pasquim e o ‘jornal de esquerda’ de hoje seria o enfoque não mais pertinente à ditadura do passado, mas aos ‘caminhos’ da nossa democracia, neste momento tipicamente de transição. Isso muda tudo, evidentemente, desde a apresentação até os colaboradores e assuntos.

Confusão geral

Outro obstáculo, na certa, é a questão que surge de imediato: ‘jornal de esquerda’, expressão do Marco Antonio Rocha e mantida por Luciano Martins Costa, chega em época de grandes dúvidas sobre os sistemas políticos chamados ‘progressistas’ – e que o são, naturalmente! A esquerda não existe mais – dizem muitos analistas, com base no fim da União Soviética e na transformação a cada dia que passa da China em potência capitalista. Apesar de a publicação proposta ser ‘de esquerda’, não teria vínculo com qualquer partido ou corrente esquerdista, para não se tornar sectária e ganhar força própria: é claro que se trata da atualização do pensamento. Será que o Partido Comunista Francês e seu congênere italiano, as duas organizações que sempre foram a vanguarda dos comunistas do mundo ocidental, estão assim tão perdidos e inertes diante dos acontecimentos dos últimos 15 anos?

Nessa esteira das grandes mudanças do mundo, representadas pela nova geopolítica do Leste Europeu e a globalização dos negócios, surgem os defensores de uma nova postura para a esquerda, que mais parece uma conciliação com a social-democracia. Segundo estes arautos, a nova esquerda não tem outro caminho a não ser defender a cidadania, a ecologia e as reivindicações mais localizadas e específicas, como melhorias para uma vila, bairro ou região. Aqueles grandes debates sobre a educação e seus caminhos já não existiriam mais do ponto de vista filosófico e mesmo dialético, dando lugar a um padrão ideal, pelo qual se lutaria, que atendesse os quesitos de uma outra área, que sobrepujasse as demais, que seria a ‘cidadania’. Saúde, educação, infra-estrutura e até a economia estariam subordinadas às questões da cidadania. Da mesma forma, a ecologia estenderia seus domínios sobre todos os aspectos relativos à boa saúde do planeta, subordinando também toda a legislação e posturas oficiais aos seus desígnios. Marx e Engels, assim como Lênin e Mao, estariam completamente superados nesse novo contexto.

É claro que milhares de pessoas esclarecidas, para não dizer milhões, vêem com pesar o fim da esquerda e sua transformação em mera linha diferenciada na social-democracia. Assim como há grupos de militantes de diversas correntes socialistas que ainda defendem a esquerda tradicional, inclusive uma volta ao passado. Esta situação é apenas uma amostra da confusão geral que se estabeleceu com as grandes mudanças que o mundo sofreu nestes últimos 15 anos. Este período – anos 1990 e a meia década atual – marca também a ausência total de uma ‘imprensa de esquerda’. Vale dizer que a Folha de S. Paulo, que assumiu a vanguarda do movimento das Diretas Já, na década de 1980, aproximou-se da ‘esquerda’ por necessidade, e não por escolha. Mas nunca chegou a ser um jornal de esquerda, mesmo nos momentos mais exacerbados de suas posições na defesa de mudanças para o país. Sua presença forte nesta linha provavelmente inibiu o surgimento de uma imprensa alternativa vanguardista de milhares de leitores. É matéria para se discutir.

Mercado latente

O fato é que a Folha teve presença forte no panorama nacional, com posições de jornal de cidadania, ficando o pensamento de esquerda jogado a plano inferior e esquecido. Este fato, somado à ausência de um jornal de esquerda mesmo, é o responsável pela falta de discussão e esclarecimento sobre o pensamento atual da esquerda e a crença em seu esfacelamento, sua submissão à social-democracia etc. Não podemos condenar a Folha, porque ela foi muito além, a partir dos anos 1980, do que sua fraca atuação durante a ditadura, justificada por Octávio Frias Filho como uma fase difícil para a empresa, que teve que se modernizar, assumir dívidas para isso, não podendo se arriscar ao confronto com o poder. O grande responsável, portanto, pela incompreensão geral do pensamento de esquerda ora existente é sem dúvida a ausência desse jornal de vanguarda aqui defendido.

O jornal de esquerda, que Marco Antonio Rocha e Luciano Martins Costa defendem, pode ser até um jornal diário. Mas acredito muito mais numa iniciativa de um semanário, como foi O Pasquim, com vendagem em banca em torno de 300 mil unidades, a ser alcançada num período entre os primeiros meses e um ano ou até mais. Entretanto, este jornal tem hoje a seu favor a internet, que possibilitará um avanço rápido e uma circulação muito maior, podendo chegar a superar grandes jornais de domingo do eixo Rio-São Paulo.

É um desafio interessante? É mais do que isso: há um mercado latente reclamando a ação dos empreendedores. Seria interessante discutir mais a respeito desse jornal de esquerda, torná-lo até um projeto coletivo. Quem sabe a hora é esta?

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Jornalista