Os desafios para o exercício responsável do jornalismo e, por conseqüência, da existência de uma imprensa comprometida com a ética da informação, são de enorme complexidade e amplitude – determinadas, acima de tudo, pelas mudanças que a sociedade vem passando principalmente nas duas últimas décadas: uma complexificação social ditada, entre outros fatores, por fortes alterações nos mais diversos setores e com o patrocínio da intensificação dos usos e importância que as chamadas tecnologias digitais têm em nossa vida.
A super-oferta de meios e a facilitação do acesso à informação criaram para a imprensa riscos maiores e mais freqüentes no que diz respeito aos cuidados éticos que a produção da notícia exige.
Não é de se estranhar, então, que no momento em que uma avalanche de mensagens propiciada pelo correio eletrônico, em sites noticiosos, blogs e mesmo mensagens informativas pelo telefone celular impõem-se também como fonte de informação, cabe ao jornalismo dito responsável reforçar cuidadosamente seus procedimentos básicos da construção noticiosa.
Muito se perde, muito se transforma
Aqui mesmo, neste OI, tive a oportunidade de chamar a atenção para a idéia de que ao jornalista, para preservar e garantir a sobrevivência de sua profissão, só cabe uma postura: proteger e qualificar a notícia como produto intelectual e produzido a partir de tecnologias de linguagem de indiscutível especialização. Modelos, dançarinas e atletas fazendo entrevistas, pornomodelos, médicos, pastores, advogados apresentando programas… nada disso deveria significar, em tese, risco para a profissão do jornalista.
O perigo parece estar, mesmo, dentro das próprias redações – quando o jornalista quer transformar a notícia em show ou quando o espetáculo toma conta do tempo e do espaço que deveriam ser destinados ao que, histórica e conceitualmente, compreendemos como notícia.
Se é óbvio que dançarinas, atores e modelos não detêm a qualificação necessária para a busca e checagem da informação relevante e a construção precisa do lead, o que nos preocuparia, então??? Talvez algo que, entre outras coisas, fez a juíza Carla Rister acreditar que qualquer um pode, diachos, contar o que está acontecendo no mundo. Informações incorretas, equívocos na apuração, entrevistados que sentiram-se traídos pela matéria, textos confusos… e a sedução pelo cênico e pelo espetacular que tem transformado noticiários em ambientes mais de sensações e catarses do que informação e contexto.
Melhorar as rotinas produtivas deve significar, para o jornalista, acima de tudo, utilizar-se bem das práticas e técnicas regulares e indispensáveis ao seu trabalho cotidiano. Apuração, checagem e configuração de uma narrativa jornalística que tenham como orientação principal o compromisso com a informação correta e de qualidade. Pode parecer o óbvio, mas sabe-se bem que no meio do caminho da edição de um jornal – seja ele impresso ou de mídias eletrônicas/digitais – muito se perde e muito se transforma.
Maior inquietação
A adoção de procedimentos-padrão como referência para o exercício diário da profissão encontra fácil resistência entre aqueles que acreditam e defendem que o jornalismo tem dinâmica de tal ordem como, se a cada pauta, as práticas tivessem que ser estabelecidas de maneira distinta e nova. Soma-se a isso a sensação de que a ética jornalística – norte das opções e decisões de todas as instâncias da produção noticiosa – emerge, na maioria das vezes, não do que a categoria convenciona e define para si mesma, mas, antes, pelas decisões de grupos (redações) ou até individuais. Sempre, sempre com uma justificativa técnica.
Certamente não se pode creditar exclusivamente ao jornalista, em seu trabalho profissional, as perdas e danos que a notícia contém e, muitas vezes, provoca. A imprensa é lugar, acima de tudo, de busca e exercício do poder. O jornal é uma instituição que se oferece como olhos e ouvidos da nação, mas que também fala, argumenta, polemiza e defende aquilo que é de seu interesse – seja da ordem do político, do econômico, cultural, religioso etc. Além disso, o caráter essencialmente fragmentário e precário da informação jornalística, aliado, no caso brasileiro, a um discurso de objetividade e imparcialidade (pelo modelo que copiamos dos EUA), coloca a notícia sempre em circunstância de efemeridade e incompletude. A notícia refere-se sempre ao singular, a uma factualidade que esgota-se na descrição da cena. Como diria Miquel Alsina, é a construção de um mundo possível.
Melhorar as rotinas produtivas, insisto, pode começar pela aceitação pelo repórter de que o que ele oferece ao leitor não é o fato, mas uma versão construída dentro de técnicas específicas e produzida dentro de uma lógica fabril e institucional. Melhorar o fazer jornalístico deve significar uma maior inquietação frente à informação facilmente obtida e a um mundo que insiste em apresentar-se como correto e lógico.
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Professor da PUCMinas e diretor da PUCTV