Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muita ilusão na origem da crise

Algumas verdades supremas contrabandeadas para as redações nos anos 1990 por consultores bem articulados, com as quais os gestores de jornais ainda convivem como o cura e seu breviário, começam a se configurar mais propriamente como fontes de problemas do que como recursos para a melhoria da circulação dos diários. Passados alguns anos de ciclotimia, nos quais uma nova complexidade foi submetida a recorrentes análises simplistas, consolida-se para alguns estudiosos da mídia a percepção de que muita ilusão e pouco siso estão na origem da suprema crise do setor.

Estudos que vêm sendo conduzidos há cerca de dois anos pelo pesquisador Klaus Schoenbach, doutor pela Johannes Gutenberg Universität, em Mainz, Alemanha, têm mostrado, por exemplo, que os eventuais ganhos de circulação dos jornais ocorrem com base em melhorias pontuais e cosméticas e não oferecem sustentabilidade. Uma característica desses tempos: os resultados de aumentos de circulação obtidos a partir de medidas tópicas são esticados até o limite por meio de ações de marketing que se tornam progressivamente mais custosas, acabando por eliminar em pouco tempo todos os efeitos positivos eventualmente alcançados.

A partir das observações de Schoenbach, que vêm sendo discutidas em algumas instituições acadêmicas da Europa e dos Estados Unidos – como o Centro James Cox Jr., um instituto de pesquisa em comunicação de massa da Universidade da Geórgia –, pode-se constatar que toda a parafernália de reformas nas quais a maioria dos jornais investiu seus recursos acabou distorcendo profundamente a relação entre a imprensa e seu público. Essa é uma observação que parece se relacionar muito fortemente com as raízes da crise na mídia brasileira, pelo lado da gestão dos conteúdos e da relação entre os jornais e seus leitores.

‘Mediano e barato’

Sabe-se, a partir desses estudos, por exemplo, que mais cores, maior variedade de temas, orientação mais local, em páginas mais claramente estruturadas com índices e outros elementos facilitadores, tendem a aumentar o número de leitores. No entanto, a observação mais prolongada de Schoenbach indica que, na mesma medida em que se alcançam melhorias na circulação, esse processo de tornar o produto mais leve produz uma redução no tempo destinado pelo leitor ao jornal e no valor que ele percebe na leitura. Além disso, o cuidado no desenho, com layouts mais arejados e muito espaço em branco, tem sido um fator mais importante para o aumento da circulação do que investimentos em conteúdo e marketing, mas são características que atraem um público menos educado e, por conseqüência quase direta, de menor poder aquisitivo. Com isso, cai o valor do jornal como mídia para a publicidade.

Os elementos visuais, como fotografias, mapas, bandas coloridas e outras ornamentações não necessariamente relacionadas com o conteúdo, costumam atrair leitores, mas se situam numa estreita margem de risco: tanto podem estimular a compra do jornal na banca, quando aplicados em quantidade e tamanho moderados, quanto podem produzir um efeito rápido e contrário de rejeição. Os chamados infográficos, que durante anos fizeram a festa de consultores de Miami em jornais brasileiros, não foram considerados por Schoenbach como fatores importantes para o aumento da circulação. No longo prazo, perdem feio para as imagens da TV e da internet em termos de conteúdo informativo.

Visto de um prazo mais longo, o deslumbramento com a substituição do texto pela imagem revela-se desastroso para a sobrevivência do jornal diário, como produto de alto valor percebido. Ao que tudo indica, essa tendência tem uma relação direta com um processo de deseducação do leitor médio e do próprio jornalista, induzido a buscar no texto uma linguagem correspondente em agressividade à contrapartida de imagens e cores. Não é, portanto, casualidade o fato de o leitor valorizar articulistas tão mais agressivos quanto superficiais e levianos. Também não é gratuito o fenômeno do bordão substituindo a reflexão.

O jornal procurou tornar a leitura mais confortável, reduziu o tamanho e a densidade dos textos, procurou dar nobreza à informação visual fabricada na redação. O leitor se acomodou às facilidades, tornou-se menos exigente e o circulo vicioso se completou com a busca de profissionais mais baratos e menos afeitos a contestar as escolhas de seus chefes.

A redução progressiva do número de queixas dos leitores quanto a erros de sintaxe, de grafia ou de digitação, pouco percebida nos jornais, coincide com a minimização da cobrança por mais acuidade no texto, constatada na maioria dos grandes jornais. Publica-se o ‘erramos’, quando alguém percebe o erro, e ficamos por isso mesmo. Como se diz que em time que está ganhando não se mexe, a receita do ‘mediano e barato’ se repete à exaustão. Só que o jogo não acabou e as redações não demonstram ter produzido nos últimos anos quadros adequados para liderar a necessária quebra dos paradigmas.

Divisão perfeita

Ao lado das medidas de ‘arejamento’ editorial e da valorização do marketing como bengala para a qualidade insatisfatória do produto, ocorreu outra distorção, nas formas de percepção do jornal sobre seu posicionamento no mercado e no monitoramento do grau de fidelidade dos seus leitores. A maioria dos jornais, mesmo aqueles que circulam em cidades médias do interior, costuma fazer pesquisas para acompanhar seu desempenho. As principais áreas observadas são hábitos e freqüência de leitura, resultados de promoções sobre a circulação e gestão, e o efeito de mudanças no desenho e de novos cadernos.

Fora do universo de seu próprio público, os jornais também acompanham as mudanças de atitude em faixas específicas da população, analisam competidores e, eventualmente, utilizam pesquisas de opinião sobre temas específicos. No entanto, segundo se depreende da observação de longo prazo, esses instrumentos podem ter se tornado ineficientes para a percepção de tendências, o que coloca a gestão da mídia sempre um passo atrás do que realmente pode instigar à leitura. Ou seja, a imprensa parece ter abdicado da vanguarda.

Assim, o que começou como um processo de facilitação da leitura acabou conduzindo ao vício da banalização e a um perigoso processo de alienação das redações diante de questões que exigem mais densidade na interpretação. Os combates entre traficantes numa favela do Rio são apresentados como ações isoladas do contexto social e institucional do país, indicadores econômicos são utilizados como referência de otimismo ou como trombetas do apocalipse, ‘pesquisas’ sem referência às metodologias adotadas são brandidas para referendar premissas que dormem há décadas na cabeça de editores, ‘fontes’ com evidentes conflitos de interesse dão credibilidade a versões tomadas a priori.

Tudo colorido, tudo perfeitamente dividido em módulos de leitura.

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Jornalista