Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mundo moderno e a nova mídia

O crescimento da audiência nos segmentos de notícias online, étnica e alternativa nos Estados Unidos, revelado pelo documento The State of the News Media 2004 produzido pelo Project for Excellence in Journalism, não deveria causar surpresa. O Observatório de Imprensa dedicou espaço ao estudo gerado pelo instituto filiado à Columbia University Graduate School of Jornalism [veja remissões abaixo]. Na verdade o que se vê lá são reflexos de vários processos sociais que vêm se desdobrando – e sendo analisados – há cerca de 30 anos. Procurar entender as mudanças deveria ser uma obrigação dos jornalistas e profissionais de comunicação de uma forma geral. No mínimo para poder se adaptar às mudanças seguintes.

O estudo aponta tendências do material editorial, da audiência, da economia, dos proprietários das mídias, dos investimentos feitos pelo setor e das atitudes do público. A impressão que se tem da leitura do documento é que os grandes jornais, as redes de TV aberta e locais, as redes de TV a cabo, o rádio perderam um pouco da sintonia com parcelas importantes e novas da população. Essas parcelas são em grande parte responsáveis pelo crescimento da audiência na internet e também pelo número de jornais e revistas alternativas, assim como pela explosão de veículos em outras línguas que não a inglesa em território dos Estados Unidos.

As regras do mundo moderno

A base do fazer jornalístico realizado naquele país é calcado nas regras do mundo moderno. E quais são essas regras? A modernidade é um projeto civilizatório, que pretendia, nos idos do século 18, colocar a universalidade, a individualidade e a autonomia como valores centrais de uma civilização nova. Esse projeto foi elaborado pela Ilustração européia a partir da experiência e da cultura judaico-cristã e helênica. Nos dois séculos seguintes esse projeto foi aprofundado pelo liberal-capitalismo e pelo socialismo.

Resultado: a educação, a forma de fazer política, a forma de fazer ciência e de guiar a própria vida privada ou pública no mundo moderno foram determinadas por essas três regrinhas. A universalidade nos indica que todos os seres humanos são iguais e que barreiras étnicas culturais não devem impor diferenças entre os indivíduos. A individualidade – não individualismo – significava na cabeça dos modernos do século 18 que cada sujeito é uma pessoa concreta e há um atributo ético à sua crescente individualização. A autonomia é a possibilidade dos indivíduos pensarem por si mesmos, sem tutela duma religião ou ideologia ou qualquer outra visão de mundo.

Esse caldo está mais perto do jornalismo e dessa crise apontada pelo estudo do Project for Excellence in Jornalism do que parece. O ceticismo, a necessidade de investigação e comprovação de fatos, a releitura de provas e da contraprova, são filhas de uma coisa chamada autonomia intelectual. A base disso é uma visão secular do mundo. Essa autonomia intelectual é, como escreveu o ex-ministro e pensador Sérgio Paulo Rouanet, o ideal mais irrenunciável do Iluminismo. É da autonomia intelectual que vem a institucionalização da liberdade de expressão e de criação cultural e difusão nas universidades e escolas – de jornalismo inclusive –, a ética do livre exame das coisas, dos fatos, dos acontecimentos.

A autonomia intelectual, ainda, alimentou o racionalismo científico que gerou a bomba atômica, sim, mas que foi também responsável por um modelo de explicação dos comportamentos humanos. Foi esse modelo de explicação, esse saber, que substanciou o jornalismo até agora através das ciências naturais e das ciências humanas e sociais. A base dessas ciências são filosofias totalizantes, ou seja, que pretendem narrar uma estória humana do começo ao fim. Por exemplo, a narrativa iluminista do progresso da razão e liberdade; a dialética hegeliana do espírito em progresso de autoconhecimento; ou a narrativa marxista, sobre o fim da alienação e da divisão social do trabalho que levaria à sociedade igualitária.

E daí?

Mas o que é que isso tudo tem a ver mesmo com o jornalismo, com o crescimento das mídias alternativas e a queda de audiência dos jornais?

Um livrinho chamado A condição pós-moderna escrito por um francês chamado Jean-François Lyotard dá a dica: essas formas racionais de interpretação da realidade já não atendem mais à complexa teia de acontecimentos do mundo humano, tornaram-se obsoletas.

A autonomia intelectual, diz Rouanet, está sendo explodida (com trocadilho, infelizmente) por um reencantamento do mundo, ‘que expõe duendes em circulação, organiza congressos de bruxas, associa-se ao Guia Michelin para facilitar peregrinações esotéricas a Santiago de Compostella e fornece horóscopos eletrônicos a texanos domiciliados no Tibet’. É dessa mistura que emerge, com sua força, a mídia alternativa de que fala The State of the News Media 2004. A visão (diga-se de passagem, pessimista) de Rouanet pode ser associada à proliferação dos muitos particularismos – nacionais, culturais, raciais, religiosos e sexuais.

Esses particularismos se contrapõem à idéia de universalismo tão cara ao velho projeto civilizatório moderno. Dessa contraposição advém a explosão de expressões que façam valer as visões de mundo ligadas a nacionalidades, culturas, raças e religiões. E entre essas expressões estão jornais, revistas, sítios pessoais, blogs, listas de discussão e o que a tecnologia permitir acontecer nos próximos anos.

Logo no início do estudo do Project for Excellence in Journalism, um texto introdutório afirma que o jornalismo está ficando mais complexo. E isso é evidente por uma constatação mais óbvia ainda: ele tem que atender à complexidade de fora das redações, tem que dialogar com ela, responder a suas demandas. Esse é um dos fatores que explicam a queda de audiência das TVs americanas, e também a redução de leitores e de circulação de jornais na terra do Tio Sam.

Lyotard diz que o conhecimento e a ciência moderna não atendem mais às necessidades do homem atual, não respondem mais às suas inquietações. Rouanet fala que o projeto civilizatório moderno, todas aquelas três regrinhas, está fazendo água por todos os lados e que estamos a caminho da barbárie. Mais: ele afirma que existe uma rejeição geral dos próprios princípios da modernidade. Essas duas visões sobre as mesmas mudanças sociais nos indicam mais do que nunca a necessidade de entender os particularismos, a emergência de discursos e novas visões de mundo. Sem isso, não será possível para o jornalismo e os jornalistas se inserir nas tendências desse mundo em transformação e que tem reflexo nas formas de se fazer política, arte, economia, comportamento, tecnologia.

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Jornalista do Diário de Pernambuco