Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O espelho quebrado da mídia

O mercado mundial de divisas negocia diariamente um volume de 2 trilhões de dólares. O número de subnutridos em todo o planeta alcança a cifra de 1 bilhão de indivíduos. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, anuncia resultado de pesquisa na qual se constata que dois terços dos cidadãos do mundo – incluídos habitantes das democracias que lideram a economia mundial – não se sentem representados por seus governantes. Um pequeno grupo de indivíduos dispostos a morrer por uma doutrina que eles próprios não conhecem coloca em xeque a segurança das maiores potências do mundo.

Bastam essas três informações, colhidas aleatoriamente em noticiários dispersos pela internet, para se ter uma idéia de como andam distantes do mundo real as escolhas que nos oferece a mídia.

A partir de 1999, e até o início deste ano, tive a oportunidade de analisar os perfis de centenas de executivos, para um trabalho acadêmico que acabou virando livro. O mundo vivia, desde então, um processo de mudanças tão rápidas e surpreendentes que as primeiras entrevistas foram rapidamente perdendo validade, restando o material como uma sucessão de opiniões e premissas vencidas, semelhantes a uma pilha de jornais velhos.

O material analisado não pôde ter aplicação acadêmica, uma vez que seu conteúdo perdeu uniformidade, mas pode dar uma amostra interessante de como os chamados formadores de opinião – aqueles que decidem dentro das empresas se uma família vai seguir sonhando ou se o seu arrimo vai ser demitido – na verdade baseiam sua visão de mundo num mosaico de informações sem sentido.

Um exemplo: na primeira etapa do trabalho, um grande número de entrevistados manifestava especial preocupação com o chamado ‘bug do milênio’. Reportagens e artigos conduziam a uma visão apocalíptica da encrenca tecnológica que, em tese, levaria ao caos toda empresa que houvesse digitalizado seus dados e processos. Seria virar o ano 99 para o 00 e o mundo iria desabar como um jogo de dominós, numa confusão de números que acabaria paralisando toda a economia global.

Com base nessa ameaça, milhares de executivos tomaram provavelmente decisões equivocadas, dirigiram recursos para a direção errada e, claro, deixaram o caixa descoberto. Mais tarde, muitos acabaram pagando com seus empregos, exceto, é claro, aquele que cometeu o erro de origem. E os profetas do apocalipse seguiram produzindo suas colunas em jornais e revistas.

A análise que falta

A partir de 2000, foi o inchaço, a explosão da chamada bolha, que, segundo muitos formadores de opinião, iria arrastar para o buraco dois terços do planeta. Na verdade, o que houve foi um processo rápido de maturação tecnológica que se caracterizou pela oferta de soluções mais adaptáveis e indicou a necessidade de reduzir o desperdício provocado pela aceitação passiva da obsolescência de equipamentos e sofwares. A aplicação da tecnologia ficou mais responsável e conduziu à percepção de que sistemas proprietários podem causar riscos de dependência excessiva. A crescente valorização dos chamados softwares livres vem dessa tendência.

Em termos de gestão, muitos outros processos, mesmo que não dependentes de tecnologia da informação, passaram a considerar a flexibilidade como um valor muito especial, e a economia encontrou meios de uma retomada, ao mesmo tempo em que se renovava rapidamente a própria tecnologia. O crescimento acelerado das aplicações de transmissão de dados sem fio tem essa origem: risco e custo aconselham a descentralização, percebe-se o real valor de apostar em mobilidade e flexibilidade.

Isso são detalhes de gestão associada à tecnologia da informação, que interessam basicamente a quem lida com o tema. Porém, o assunto freqüenta hoje este Observatório pelas seguintes razões: primeira, a imprensa somente se deu conta dessa transformação à medida em que fatos concretos, como os lançamentos de aparelhos ou programas, foram revelando a maturidade da tecnologia; segunda, a imprensa ainda não nos presenteou com uma análise aceitável de como essa mudança tem alterado as nossas vidas.

Quem edita?

Para não ficarmos presos a bits e bytes, vamos encurtar a conversa. No mesmo período, os ataques terroristas aos Estados Unidos, em 11 setembro de 2001, e sua seqüência, em Madri, 11 de março de 2004, revelaram não apenas o beco sem saída para onde a humanidade havia caminhado, mas abriram a perspectiva de um conflito sem uma conclusão aceitável, pelo menos em termos de valores civilizados. E novamente somos conduzidos por um noticiário fragmentado, do qual só com muito esforço e muita leitura colateral se consegue obter alguma noção do que estamos vivendo, sob uma perspectiva histórica. É como se a imprensa nos mostrasse o cenário por um espelho quebrado.

Há quase dez anos, essa preocupação era tema diário de debates no processo de construção da primeira página do jornal O Estado de S.Paulo. Todos os dias, os profissionais destacados para fazer a capa do jornal discutiam os fatos sob variadas perspectivas. Um filme, um indicador econômico, uma peça de teatro ou a declaração de um político, tudo era colocado sob essa lente. Nós dizíamos que cada edição de um dia deveria conter o DNA da História. A economia, a política, a competição, a gafe, o humor do dia, tudo se juntava para que o leitor pudesse, minimamente, observar a História a partir da janela daquele dia.

Nunca saberemos em que medida aquela equipe foi bem-sucedida. Sabemos apenas que aquelas edições eram utilizadas em trabalhos acadêmicos, e com muita freqüência recebíamos solicitações de universidades sobre fontes de informações citadas na primeira página do jornal. Detalhe: todos aqueles jornalistas tinham pelo menos dez anos de carreira. Outro detalhe: qualquer um deles poderia ser o editor da primeira página.

Em 1995, quando o premiê israelense Itzhak Rabin foi assassinado, não havia diretores ou um editor-chefe na redação. Foi uma redatora, trabalhando na primeira página, quem decidiu mandar a Israel o repórter Moisés Rabinovici, naquele fim de semana. Ela sabia que o especialista deveria ser embarcado no primeiro avião e, mesmo sem ter podido conversar com nenhuma ‘autoridade’ do jornal, providenciou imediatamente passagem e dinheiro para que o repórter estivesse em Israel junto com os enviados de todos os grandes jornais do mundo.

Foi uma cobertura memorável, requisitada por muitos estudiosos do Oriente Médio ainda muitos anos depois. No ano que vem, quando se completarão dez anos daquele incidente, a presença de um repórter brasileiro no local dos fatos ainda estará ajudando o leitor a entender a natureza daquela guerra sem fim e, principalmente, a guinada que o Estado de Israel deu à direita, fazendo recrudescer o conflito na Palestina.

A dúvida é: quem irá editar esse material? Quanta experiência terá esse jornalista? Qual será seu salário? Quanto tempo de sua vida terá dedicado a assistir a boas peças de teatro, a bons filmes; que bons livros o ajudarão a ampliar o horizonte dos fatos, para que seja um bom mediador a serviço do interesse público?

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Jornalista