Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O risco dos efeitos colaterais

Começa a se configurar o modelo do socorro que o BNDES deverá prestar às empresas de mídia no Brasil: um total de até 4 bilhões de reais será colocado à disposição dos solicitantes, por meio de outros agentes financeiros. Além disso, poderá ser criada uma linha de crédito especial para a compra de papel de imprensa e formação de estoques dos chamados insumos estratégicos. Tudo, claro, a depender de projetos que serão analisados pelos técnicos do banco de fomento, caso a caso.

Aí é que dorme a jaguatirica. Na toca do repasse indireto, enfatizado mais de uma vez pelo vice-presidente do BNDES Darc Costa durante audiência na Comissão de Educação do Senado, semana passada, é que se escondem os riscos de favorecimento que podem comprometer a imprensa.

Ao evitar o estabelecimento de uma regra geral muito clara, o BNDES cria as condições para uma personalização que pode desandar em decisões arbitrárias, influenciáveis pela tábua das marés ou pelo noticiário, em tempos de crise de governabilidade e de eleições municipais.

Todas as grandes empresas que publicam jornais e revistas, além do Grupo Globo e da Rede Bandeirantes, bateram palminhas. Record, SBT e RedeTV!, de olho na audiência dominada pela Globo – que tem quase 60% das TVs ligadas em seus canais –, voltaram a manifestar sua discordância com a possibilidade da destinação de recursos públicos para pagamento de dívidas. Querem que o dinheiro seja reservado para atualização tecnológica e financiamento de produção.

A Folha de S.Paulo se reservou o direito ao distanciamento, depois da expressa manifestação do patriarca Octavio Frias de Oliveira contra qualquer espécie de socorro oficial às empresas de comunicação.

Aliado bem-vindo

O BNDES deverá funcionar como avalista de operações tomadas junto a outras instituições bancárias, em condições mais favoráveis na medida que o próprio governo, por meio de seu banco de fomento, deverá ser o garantidor dos devedores. Mas tanto para negociações de dívidas, caso a caso, ou de projetos de investimento em produção televisiva ou projetos editoriais – o que reduziria o comprometimento futuro das empresas – será preciso, além do cumprimento das exigências dos agentes financeiros diretos, passar pelo critério de ‘bons projetos’ definido pelo BNDES.

Como um ‘bom projeto’ tanto pode ser o rearranjo de uma parcela a vencer de uma dívida da Globo, como o financiamento de uma casa cenográfica da Eni, para um ‘reality show’ em horário tardio no SBT, fica tudo mais ou menos a critério de quem irá dizer o que é um ‘bom projeto’. Darc Costa afirma que o BNDES tem um corpo técnico capacitado a se debruçar sobre qualquer tema, o que autoriza a supor que, no fim das contas, o que vai contar será esse parecer técnico.

Como temos visto pareceres técnicos aprovando despesas muito exóticas – a exemplo daquelas que permitiram erigir a nova sede do Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo, verdadeiro monumento ao Judiciário que o magistrado Nicolau dos Santos Neto deixa como seu legado –, também estão os observadores autorizados a imaginar que esse arbítrio tanto poderá incorporar o irmão mais piedoso de Madre Teresa como aquele sócio mais esperto do Waldomiro.

O governo atual perdeu o direito ao habeas-corpus moral, ou ao pressuposto da inocência, diante da opinião pública, ao reagir com chiliques diante das primeiras denúncias de irregularidades envolvendo um ex-assessor muito próximo do mais próximo ministro da República. Certas proximidades, portanto, permitem colocar sob observação cerrada quaisquer outras possibilidades de favorecimento, principalmente quando em um dos lados do balcão está a imprensa, de cujos humores o governo tem dependido em grande parte para superar a crise provocada pela arrogância do ministro José Dirceu.

Perdida a virgindade, cabe ao governo aceitar a vigilância externa.

Risco de morte

Quanto aos jornais e às casas publicadoras de revistas, a anunciada decisão do BNDES de amenizar a crise caso a caso poderá produzir mudanças em alguns postos de decisão editorial. Não seria de estranhar, por exemplo, se o recente troca-troca envolvendo as revistas de negócios da Editora Abril tivesse levado em consideração, entre outros atributos, a especialidade de quem deixa o comando e a flexibilidade de quem assume.

Com exceção da Folha, que dispara para todas as direções e parece ter sido tomada por um frenesi golpista, todos os grandes jornais têm procurado temperar seus noticiários com editoriais bem balanceados em favor da governabilidade.

O vice-presidente do BNDES e toda a cadeia de comando hospedada em Brasília sabem muito bem que não podem contar com a boa-vontade da imprensa em tempos de prosperidade. A crise da mídia é, portanto, claramente, aliada de um governo formado por um grupo político que historicamente tem sido tratado com desprezo e antipatia por praticamente toda a grande imprensa nacional.

É nos postos de comando editorial, muito mais do que nos comitês financeiros, que se vai jogar o destino dos ‘bons projetos’. No caso de uma demanda encalhada junto ao corpo técnico do BNDES, não seria aconselhável ter em casa um corpo editorial dado a excessos de independência.

O perigo mora exatamente aí, quando se fala em riscos para a mídia. No momento em que se esfacela o poder das famílias tradicionalmente detentoras dos negócios de imprensa, e não contando o país com um modelo de negócio alternativo, o jogo passa perigosamente a ser jogado muito perto do computador de cada editor. Um pouco mais de realismo, e mude-se um título. Se chegarmos a esse ponto, a imprensa estará assumindo o risco de superar a crise financeira e morrer de falta de credibilidade.

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Jornalista