Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O toque Armani no jornalismo

Um crítico de cinema deve se manifestar sobre a qualidade do espetáculo cinematográfico. O crítico teatral sobre a peça e a encenação. O crítico literário examina a escrita, o teor da mensagem, os atributos do texto.


O que se espera dos críticos de mídia quando um jornal, revista ou programa de TV refaz o seu visual? Como se trata de uma manifestação artística e cultural, o critério da avaliação deve ser apenas o estético? Se os meios de comunicação têm, antes de tudo, uma função sociopolítica, qual a importância do design e do grafismo de um veículo?


O novo desenho do Estado de S.Paulo, estreado no domingo (17/10), chamou muita atenção dos observadores da mídia. Em primeiro lugar porque o próprio jornal investiu pesadamente para anunciá-lo. A mudança chamou a atenção, principalmente, porque o jornal, dono da imagem de clássico, de repente resolveu trocá-la.


O que deve nos interessar no caso é justamente a necessidade desta troca de imagem. Se o jornal ficou mais ou menos bonito, mais ou menos atraente, é secundário. Na medida em que jornais ou revistas são comprados há anos – às vezes décadas – supõe-se que seus leitores gostem deles e afeiçoaram-se ao padrão visual repetido diariamente


Então por que trocar? Por que romper tão bruscamente hábitos de leitura que, junto com a periodicidade, são as âncoras que amarram o leitor ao seu jornal ou revista?


A discussão é antiga. O New York Times leva anos para implantar suas mudanças de maneira a não assustar os leitores. Por isso adota a estratégia homeopática por meio de alterações imperceptíveis. Ou quase. Mas não pára de mudar. Não muito diferente das leitoras (ou leitores) cujas cirurgias plásticas são percebidas apenas pelos consortes.


A reforma iniciada no Jornal do Brasil em 1956 foi mantida pela equipe que assumiu o jornal em 1962, e implementada sub-repticiamente ao longo de 12 anos. Talvez porque se preferiu a noção de ‘processo’ no lugar de ‘reforma’, o JB desenvolveu um estilo. Institucionalizado, serviu de modelo (ou plataforma) para inúmeras experiências e adaptações. Inclusive no Estadão.


No caso, não se trata de trocar o guarda-roupa, a palheta da maquiagem ou o nó da gravata. Ao implodir sua aparência, um veículo impresso desvenda uma incerteza com relação à sua identidade. Se, para inspirar confiança, os jornais procuram se mostrar imperturbáveis, imunes às pressões do poder e à passagem do tempo, por que recorrer aos atalhos e movimentos inesperados?


Se o vetor do processo jornalístico consiste justamente em transmitir discernimento e sabedoria aos leitores, um corte radical no visual não seria uma confissão de incapacidade para manter-se sempre ajustado e atual?


Maturação rápida


A mudança operada no Estadão não escondeu o desejo de torná-lo moderno e mais jovem. Está expresso no uso das cores e ilustrações, no aumento do tamanho das fontes e do espaço das entrelinhas. Está registrado no encurtamento das matérias, artigos e editoriais. A mancha tipográfica, geralmente negra e por isso impactante, foi suavizada, ficou clean, esbranquiçada, quase cinza. Tem algo de loja Armani.


Gosto não se discute, mas o que significa ser moderno e jovem – segmentar ainda mais a cabeça do leitor e retirar do jornal sua unicidade e universalidade? Aumentar o número de cadernos e estimular a leitura parcial do seu conteúdo? Atender ao jovem e moderno exige tais sacrifícios?


O seu concorrente, a Folha de S.Paulo, cedeu às mesmas tentações e fez o mesmo movimento no início dos anos 1980. Cadernizou-se, segmentou-se, deixou de lado o elegante paradigma inglês que adotou em 1975 e partiu para a fórmula sincopada do USA Today. Quando uma década depois aqueles jovens (leitores e jornalistas) começaram a ficar mais velhos, o jornal viu-se obrigado a fazer nova plástica.


Jornais como o Washington Post também sentiram a necessidade de se renovar – mas o fazem constantemente, não aparece. Também querem agarrar o segmento jovem mas optaram por uma estratégia diferente: lançaram um novo produto, o Express, um vespertino, formato tablóide, vivo, voltado para as coisas da cidade e, ao que tudo indica, está dando certo. A empresa que edita o WP não correu riscos, não trocou de público – agregou outro.


Os leitores do WP em 1974 vibraram com os feitos da dupla Woodward-Berenstein que levaram à renúncia de Nixon. Trinta anos depois, seus filhos ou netos também vibrariam se o jornal reeditasse o caso Watergate e conseguisse impedir a vitória de George W. Bush nas próximas eleições. Neste intervalo – uma geração! – o jornal mudou relativamente pouco (descontado o uso da cor). Não precisava.


Ao analisar esta devoção ao público jovem convém não perder de vista certas considerações de ordem demográfica e social que marqueteiros e publicitários não gostam de ouvir: o mercado jovem é transitório, a sua expansão está sendo neutralizada por um movimento de pinças: por um lado, a rápida maturação dos jovens profissionais e, por outro lado, o inevitável aumento da longevidade humana.


Os jornais perderam circulação – e isso não apenas no Brasil – porque a pretexto da juvenilização da audiência abandonaram os pressupostos que os fizeram indispensáveis na geração anterior. Nesta hora festiva, convém não esquecer esta irrelevância.


Em busca da densidade


Os consultores e projetistas internacionais que ganham a vida redesenhando e refazendo a mídia impressa pelo mundo afora não estão minimamente preocupados com o futuro dos jornais, do jornalismo, da imprensa, da cultura e da sociedade. Seu negócio é cosmética, cosmética em papel. Não prometem permanência ou durabilidade – se assim fosse morreriam de fome.


O semanário The Economist certamente está interessado em faturar e aumentar sua audiência e manter-se como um dos cinco grandes do mundo. Já fez diversos face-lifts, está sempre criando novidades mas não abriu mão de algumas de suas obsessões: títulos preciosos, textos informativos, fotos que funcionam de forma ambiental (raramente com legendas). Seus redatores continuam anônimos e, não obstante, freqüentemente brindam a inteligência de seus leitores com pequenos e inesquecíveis virtuosismos como o editorial da pág. 14 da edição de 9/10.


Inspirado numa frase de Winston Churchill (‘As palavras breves são melhores e as palavras antigas, quando breves, melhores ainda’), o texto foi escrito com vocábulos de, no máximo, duas sílabas. Brincadeira? Com brincadeiras assim se deliciam jovens e velhos, modernos e tradicionalistas. Jornalismo não é apenas serviço – se assim fosse as listas telefônicas seriam imbatíveis.


Com apenas três edições, impossível fazer avaliações e juízos mais consistentes sobre aspectos concretos da mudança no Estado. Mas, a partir do título, o caderno ‘Aliás’ promete interessante incursão pelo jornalismo analítico. Um lapso chamou a atenção na primeira página do domingo: nenhuma referência internacional. Culpa das emoções de estréia que no Estadão (o jornal com a melhor cobertura do estrangeiro) torna-se muito visível.


Conservada na sua essência, a página de opinião do jornal (A 3), a mais influente do país, foi habilmente integrada à op-ed page (reservada aos colunistas). Graças à diminuição no tamanho dos textos de ambas sobrou espaço para ampliar e oferecer mais visibilidade às cartas dos leitores, área em que a Folha levava nítida e antiga vantagem. O defeito poderia ter sido consertado há tempos sem envolver tantos riscos.


Também o caderno ‘Cultura’ foi preservado e enriquecido com as matérias do New York Review of Books, a melhor publicação cultural dos EUA. Concessão aos tradicionalistas, indício de que os jovens também querem densidade – de qualquer forma, uma prova de que o modelo Armani de jornalismo ainda levará muito tempo para se consolidar. (Continua)