Passaram despercebidos, para a maioria dos leitores e telespectadores, em geral mais atentos às mensagens explícitas dos meios de comunicação, certos detalhes de edição do noticiário sobre as eleições em São Paulo. Pelo menos não houve referências em cartas de leitores dos grandes jornais.
Para o olhar treinado de um publicitário, porém, são muito mais do que coincidências certas escolhas feitas nas mesas de edição. O diretor de uma agência que divide a conta da Caixa Econômica Federal comentava, no domingo (31/10), que as imagens de um carro sendo empurrado numa rua alagada, escolhidas para ilustrar a vinheta com que a Rede Globo anunciava o último debate entre Marta Suplicy e José Serra, na sexta-feira (29/10), era, claramente, um instrumento de indução de opinião negativa contra a prefeita, funcionando, ao contrário, como indutor positivo para a mensagem de Serra.
Da mesma forma, ainda mais explícita, a reportagem do Estado de S.Paulo, publicada com destaque na última página do caderno ‘Aliás,’ de domingo (31), sobre as ‘escolas de lata’, oferecia uma evidente mãozinha na campanha do PSDB, explicitamente encaixada na manhã do dia da votação.
A reportagem, em tom emocional, remetia tão claramente a um dos blocos do debate de sexta-feira na Globo e coincidia tão completamente com um dos pontos em que Serra vinha insistindo em suas últimas declarações, que parecia ter sido pautada pelo comitê do candidato tucano.
Opção conservadora
O texto é o relato de uma semana do menino João Vítor Leite Lima, 6 anos, aluno de uma escola municipal da favela Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. Escrita em tom emocional e recheada de comentários abertos do jornalista, a reportagem ficaria de bom tamanho num panfleto de campanha. Afora o fato de o menino ter sido identificado e fotografado, não sendo propriamente edificante o relato de sua rotina diária – (diz o artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente que ‘o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais‘) – fica difícil disfarçar o caráter tendencioso da escolha editorial.
Os dois episódios, culminando uma das mais emblemáticas coberturas eleitorais dos últimos tempos no Brasil, são apenas detalhes de uma questão que está intimamente relacionada ao futuro desempenho do negócio do jornalismo no país.
No plano geral, o que se evidencia é que, havendo em disputa duas alternativas políticas, a imprensa nacional estará engajada automaticamente na mais conservadora, ou naquela que lhe parecer mais distante da faixa esquerda do espectro político. No plano da qualidade jornalística, merece uma análise sobre a tendência à homogeneização do noticiário e os riscos que isso pode trazer para a credibilidade da imprensa.
Na contramão
Nesse sentido, o jornalismo brasileiro está andando na contramão do que os estudiosos da mídia americana apontam como os melhores caminhos para a recuperação do setor. Percebe-se nos últimos anos um recrudescimento na fragmentação da mídia nos Estados Unidos, com certa retomada dos jornais sobre os noticiosos da televisão, mas em padrões mais conservadores do que há dez anos.
Andrew Kohut, diretor do Centro de Pesquisas Pew para a População e a Imprensa, tem feito algumas considerações interessantes sobre os resultados da última versão dos estudos que desde 1990, a cada dois anos, ele conduz para a instituição. Uma delas é que a audiência jovem dos Estados Unidos está se revelando crescentemente politizada. A outra percepção é de que os setores mais conservadores da política americana, representados pelo Partido Republicano, estão ganhando credibilidade, com suporte mais explícito da imprensa.
Paralelamente, Kohut tem notado a consolidação da fragmentação da mídia, com mais fidelidade nas escolhas de meios conforme a tendência declarada em editoriais ou percebida pelo público. Isso significa menos diversidade nos públicos típicos de cada meio, o que aos poucos pode ir transformando a sociedade numa colcha de retalhos ideológica.
Um exemplo: o canal Fox, escolha preferencial dos telespectadores republicanos, ganhou credibilidade, até mesmo sobre a insuspeita CNN – o que significa que a emissora dá aquilo que seu público deseja, recebe o resultado em termos de audiência e realimenta o público com mais do mesmo teor conservador.
A audiência dos noticiários da televisão começa a cair e nota-se certa migração para a leitura de jornais impressos e noticiosos da internet, como fontes de informação. Os jornais tentam aproveitar esse momento, mas também observam que o público está diferente. Um estudo concluído em outubro pela Euro RSCG Worldwide, uma agência de comunicação e marketing instalada em 75 países, dá pistas desse comportamento ao revelar que pelo menos 50% dos cidadãos americanos dizem que não confiam na mídia em si, mas em colunistas específicos de jornais ou âncoras de programas de TV.
Interesse público
Em recente debate do qual participou com Andrew Kohut e Tom Rosenstiel, diretor do Projeto por Excelência em Jornalismo (PEJ) da Universidade de Colúmbia, Susan Page, chefe da sucursal do USA Today em Washington, disse que seu jornal está buscando formas de melhorar sua credibilidade e preservar a diversidade de seus leitores. Segundo ela, o USA Today está reexaminando a questão das fontes anônimas e pensa em medidas como desestimular o anonimato e ao mesmo tempo aumentar o cuidado sobre a ação dos repórteres, ‘por mais doloroso que isso possa ser’.
Tom Rosenstiel comentou o fato de que muitos leitores e espectadores, ao mesmo tempo em que preservam certa fidelidade, por encontrar coincidência entre seus pontos de vista e os da mídia escolhida, procuram novas fontes de informação na internet e na TV por assinatura. Para ele, isso deve ser visto como um alerta para a mídia em geral.
O diretor do PEJ acha que a credibilidade deve ser diferenciada da crença cega, como a que muitos telespectadores dedicam a certos âncoras de TV ou a alguns colunistas. ‘Estamos no tempo em que as pessoas perguntam por que devem acreditar em tal coisa. E a resposta é um novo tipo de objetividade que significa transparência’, comentou.
Para Rosenstiel, em vez de apostar na vinculação automática que pode proporcionar a prática de ‘agradar o cliente com mais do mesmo’, os jornalistas deveriam ‘revelar mais claramente onde se alimentam de informações e métodos, de modo que você possa olhar o resultado de um trabalho como consumidor e dizer: ‘quem é a fonte, por que ele é confiável, por que eu deveria confiar nisto e como posso decidir por mim mesmo o que pensar sobre isto’?’.
A mídia brasileira parece andar na direção oposta. Pressionada pela necessidade de preservar seu público e traumatizada com as perdas de leitores nos últimos cinco anos, ela corre o risco de apostar na ilusão de que a convergência de opiniões pode garantir a lealdade do leitor.
Não custa repetir que a diversidade, própria da sociedade, ainda é uma garantia maior para a manutenção do interesse do público. É mais fácil gerenciar meia dúzia de colunistas mais ou menos alinhados e sob controle, mas com certeza uma das qualidades que o leitor sempre irá valorizar é a capacidade do seu jornal de lidar com a pluralidade.
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Jornalista