A imprensa nos chamados países emergentes deverá protagonizar um papel cada vez mais relevante no jogo dos negócios globais nos próximos anos. E corre o risco de emergir desse cenário completamente desfigurada – afinal reconciliada com sua relevância no processo de construção da sociedade democrática, nos termos ocidentais, ou irremediavelmente transformada em objeto de manipulação, pelos construtores de imagem a serviço das grandes corporações.
Entre uma e outra possibilidade há um abismo de desigualdades, que de certa forma repetem o desnível cada vez mais visível em todas as sociedades. Uma vista geral em documentos recentemente distribuídos a executivos de grandes conglomerados de negócios com interesses globais pode dar uma idéia de como são progressivamente abissais as diferenças de recursos, visão e informações que são entregues diariamente aos cidadãos comuns, pela imprensa, e o tipo de conhecimento que está disponível a cada manhã nas telas dos computadores de quem realmente tem o poder no planeta.
Enquanto nossas fontes diárias ‘repercutem’ o último atentado terrorista, os executivos encarregados de desenvolver cenários para suas empresas analisam documentos que levam em consideração alternativas para um mundo pós-terrorismo, projetado para daqui a dez ou quinze anos. Entre esses documentos, circulava recentemente uma avaliação da infra-estrutura de cidades latino-americanas e seu potencial para abrigar grandes escritórios de negócios internacionais.
O Rio de Janeiro, cotado como um dos destinos preferenciais de grandes centros decisórios de negócio – citado como ‘equivalente a Hong-Kong’ em nível regional – é considerado completamente descartado, em função da violência e da corrupção, indicadores tidos como eliminatórios quando conjugados. Detalhe: é mais visível, para os pesquisadores, o fim do terrorismo do que a redução a níveis aceitáveis da violência associada a drogas e corrupção.
Mais vulnerável
A Global Business Network, uma instituição mundial de estudos sobre estratégia e inovação constituída por uma rede internacional de pesquisadores e executivos – à qual só é permitida a filiação corporativa –, é uma dessas entidades cujas análises informam os responsáveis pela gestão de futuro de grandes organizações de negócios. Um de seus estudos, produzido sob patrocínio de quatro gigantescas fundações (Rockefeller, Tides e MacArthur), revela que a mídia independente está crescendo e convergindo para formar um complexo que poderá competir com as grandes organizações transnacionais.
O que isso tem a ver com nossos jornais e nossas emissoras? Cruzados com outros documentos, como os estudos distribuídos recentemente pela organização suíça Megapublic sobre formação e consolidação de marcas, os achados sobre mídia independente podem indicar uma tendência à desvalorização de marcas antigas – entre elas, os títulos de publicações ou designativos de canais de TV.
O que se afirma em alguns desses estudos é que as marcas deverão ser vistas cada vez mais como propriedade cultural, não como propriedade privada – e que seu valor estará crescentemente associado a benefícios intangíveis, como afinidade moral, cultural, política ou religiosa relacionada à experiência proporcionada pelo bem ou serviço.
Em termos de mídia isso equivale a dizer que, para consolidar ou ampliar seu público, e, portanto, garantir a audiência que lhe trará resultados financeiros e sustentabilidade, a empresa de comunicação deverá apostar em valores universalistas, e ao mesmo tempo buscar agilidade no que se refere a serviços e atualidades. Dar ao público em geral, por exemplo, um pouco do que é servido à mesa das grandes empresas, juntamente com o espetáculo de todos os dias.
Num mundo em constante mudança, no qual a velocidade dos fatos supera em muito nossa capacidade de compreendê-los, o poder parece se concentrar justamente naqueles indivíduos e organizações que podem dedicar tempo à reflexão – ou pagar por ela. A mídia que irá emergir deste momento de mutação global precisará ser capaz de oferecer essas reflexões, ou se tornará cada vez mais vulnerável à manipulação por parte de organizações muito mais qualificadas em termos de comunicação e marketing.
E o futuro?
Algumas dessas organizações, desinteressadas de sutileza, investem diretamente nos negócios de mídia (veja abaixo remissões para artigos deste Observatório sobre acordo entre a Folha de S.Paulo e a Portugal Telecom). Outras se valem de assessorias de imprensa e relações públicas pertencentes ou vinculadas a grupos internacionais, extremamente bem aparelhadas e traquejadas na arte do relacionamento, para influenciar as decisões de repórteres e editores. Para o bem e para o mal – quando o resultado dessa influência é um melhor serviço para o leitor ou quando se trata de alterar o rumo de uma reportagem segundo interesses privados.
Os construtores de imagem a serviço das grandes corporações cumprem sua função, assim como os assessores de políticos em campanha eleitoral, e nisso se assemelham bastante. Tanto uns quanto outros costumam estudar cuidadosamente a mídia e conhecem de cor as premissas de cada jornal, revista ou emissora. As sugestões de pauta ou press releases das melhores agências são feitas sob medida, considerando os gostos do editor e as tendências do veículo destinatário. O jogo até aqui é legítimo.
Acontece que a mídia nacional e latino-americana, em geral, tem poucos recursos contra a possibilidade de manipulação, mas com certeza sua maior vulnerabilidade está na evidência de suas premissas, ou seja, suas premissas parecem, para os analistas cuidadosos, mais valiosas que seus princípios. Assim, por exemplo, quem deseja obter destaque para uma organização que se opõe ao desarmamento da sociedade civil, não procura a Rede Globo, mas a Bandeirantes. Quem quiser falar mal de certa multinacional de refrigerantes, procura a RedeTV!, e assim por diante.
Transformada em extensão do pensamento de seus controladores, a mídia nacional aos poucos perde seu caráter universalista e se torna mais vulnerável à manipulação, até mesmo em nível doméstico. Com que recursos poderá resistir, no futuro próximo, a influências particulares, na medida em que se tornar mais relevante para o jogo dos grandes negócios?
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Jornalista