Duas movimentações recentes marcam mudanças importantes no mercado de jornais populares no Rio de Janeiro. A primeira é o anúncio da reforma, mais gráfica do que editorial, no jornal O Dia. No domingo (26/3), em caderno de quatro páginas, o jornal apresentou a seus leitores a nova marca e novo projeto gráfico, concebido pelo designer espanhol Roger Vallés, além de mais nove colunistas – um deles postumamente – que se juntarão aos 12 já existentes.
O objetivo, segundo o que seus editores espalharam no mercado, é qualificar o jornal para competir com O Globo. Talvez para tornar mais verossímil esta possibilidade, tentada em vão em meados dos anos 1990, a nova logomarca tenha sido inspirada no ciclo de rotação da Terra, representada por um globo, na primeira página do suplemento que anuncia as mudanças.
Os símbolos, as declarações e o marketing não são suficientes para garantir que uma mudança deste tamanho possa ocorrer de uma hora para outra. Na prática, O Dia tem hoje, só para ficar num exemplo, uma editoria de Política desestruturada , com dois ou três repórteres no Rio e em Brasília; e uma seção de Nacional feita com material de agências. Como poderia competir em quantidade, qualidade e conteúdo com o Globo, que tem 62 jornalistas, correspondentes e frilas espalhados por quase todos os estados brasileiros – só na sucursal de Brasília são 32 profissionais?
Prestígio custa caro. O Globo levou mais de 20 anos para conseguir chegar perto do prestígio que tinha o Jornal do Brasil, lembrou Agostinho Vieira, diretor-executivo da Infoglobo. Só quando a crise financeira se acentuou é que O Globo conseguiu tirar grandes nomes, quase grifes, que sustentavam o velho JB. Mesmo assim, luta até hoje com o passado.
Revisão das injustiças
Uma frase de efeito costuma ser repetida na redação do jornal da Rua do Riachuelo, onde se localiza a sede de O Dia, que trocará as cores amarela e azul escuro do logotipo por um azul mais claro e laranja, representando o conceito de dualidade: ‘Vendíamos para os fregueses da Impecável Maré Mansa, agora venderemos para quem compra na Taco’.
Para quem não se lembra, a Impecável era uma loja que garantia crediário para os trabalhadores com carteira assinada, nos anos 1970, e patrocinava programas populares nas rádios cariocas. Tinha uma clientela de pobres e nordestinos, cujo patrimônio era o nome limpo na praça. Vendia produtos baratos a prazo. Hoje, quem passa pela loja instalada na Avenida Marechal Floriano, no centro do Rio, vê que ela mudou com o tempo. Trocou roupas de tergal por agasalhos, tênis e bonés Nike. Tem preços mais altos que a Taco, fincada em vários shoppings da cidade, mas que vende calças jeans tão baratas que os bolsos costumam furar rapidamente. Tomara que também não se enganem no foco do jornal!
Mais do que se transformar num jornal da elite, dos formadores de opinião, O Dia precisa encontrar um nicho para recuperar sua vendagem. Comparando a série histórica de média de vendas do IVC nos meses de janeiro e fevereiro, entre 2004 e 2006, temos o seguinte resultado da disputa entre ele e o Extra, o diário popular das Organizações Globo.
O Dia | 2004 | 2005 | 2004/05 | 2006 | 2005/06 | 2004/06 |
Jan | 171.075 | 135.939 | -20,54% | 146.851 | 8,03% | -14,16% |
Fev | 169.772 | 142.268 | -16,20% | 143.394 | 0,79% | -15,54% |
Extra | 2004 | 2005 | 2004/05 | 2006 | 2005/06 | 2004/06 |
Jan | 202.115 | 224.446 | 11,05% | 232.498 | 3,59% | 15,03% |
Fev | 201.745 | 225.513 | 11,78% | 265.023 | 17,52% | 31,37% |
Num primeiro momento, na lógica de velhos e experientes fazedores de jornais populares que ali militam, ganhar qualificação passa por uma redução no noticiário de polícia, permitindo que a página interna mais importante – a página 3 – seja dedicada às notícias de ‘cidade’. Receita antiga, que também prescreve a contratação de três jornalistas para a Geral , um para Ciência e Vida e dois para a Política.
O excesso de colunistas é considerado sinal de qualificação. Alguns destes profissionais voltam ao jornal pela segunda vez num curto espaço de tempo. O time que O Dia escalou como titular do novo projeto é formado por Ricardo Boechat, Dacio Malta, Luís Nassif, Marcelo Rubens Paiva, Ricardo Noblat, Milton Cunha, Teixeira Heizer e Sônia Alves. Eles falarão de política, economia, cidade, carnaval, esportes e ‘temas de interesse comum’. O jornal republicará ainda as crônicas da série ‘A vida como ela é…’, de Nelson Rodrigues, que fizeram muito sucesso nos extintos Diário da Noite e Última Hora.
O grande número de colunistas, no entanto, incomoda repórteres que ganham pouco e se espantam com os boatos sobre os salários dos novos contratados. Aliás, foi para aplacar a insatisfação da turma que enfrenta enchente, sobe morro e gasta a sola do sapato que editores convocaram descontentes, na semana passada, para anunciar que as eventuais injustiças seriam revistas em breve.
‘Evitar o mau gosto’
A disputa entre O Dia e o Infoglobo não se limita aos principais produtos de suas empresas. Estendem-se aos outros jornais que publicam – Meia Hora (do grupo O Dia), Extra e o recente Expresso de Informações (Infoglobo). Aliás, o lançamento do Expresso é o segundo fato marcante no mercado de populares nesta semana.
O novo jornal, que foi para as bancas à socapa, na segunda-feira (27/3), pegou todo mundo de surpresa, inclusive os funcionários do Infoglobo. Duas reuniões foram realizadas no auditório de 400 lugares, no prédio de O Globo, para prestar esclarecimentos aos empregados. O Expresso saiu no mesmo dia em que colocou sua propaganda na rua. Tem o anunciado objetivo de disputar o mercado de jornais nas classes C e D, que está sendo galgado rapidamente pelo Meia Hora, lançado em setembro de 2005 para impedir o crescimento do Extra. A média diária de vendas do MH, em fevereiro, foi de 105.151 exemplares diários.
Na prática, o novo tablóide terá entre 32 e 40 páginas, sendo 24 editoriais e as demais de classificados e anúncios. Não circulará nos fins de semana. Não terá campanha publicitária na TV. Não terá distribuições de prêmios por meio de cupons. Ou seja, evitará tudo o que dá certo no Extra para manter o parente na liderança do segmento popular, agora dividido em dois: o popular e o popular-compacto (designação para os jornais que são lidos em 20 ou no máximo 30 minutos).
Assim como o Extra e o Meia Hora, a logomarca do Expresso da Informação tem as cores vermelha, branca e preta, mas poderá trocar o preto por outra cor, dependendo da ocasião. A linguagem está mais próxima da oralidade. ‘Ai, meu fusquinha! Ai, meu táxi!’, ‘Homem voa da Ponte e some’ e ‘Bebum jogou ossada no lixo’ são alguns dos títulos da primeira e das páginas internas. Em alguns momentos lembra a linguagem dos jornais popularescos.
‘Nosso objetivo é fazer uma inclusão social dos trabalhadores através da informação. A linguagem que oferecemos pode parecer estranha para quem tem nível superior, mas é a forma como os leitores das classes C e D se expressam’, afirma Marcelo Senna, editor responsável do Expresso. ‘Nosso desafio é evitar o mau gosto. Tudo o que estamos fazendo está baseado em pesquisas.’
Nas raias da loucura
A disputa entre as duas empresas também esquenta em outras áreas. Entre elas, na circulação. Há meses, a Editora O Dia fechou contrato com a Supervia, empresa que explora o serviço de trens urbanos, por meio do qual a concessionária garante exclusividade da venda de O Dia e Meia Hora nos trens e nas estações do Rio. Em contrapartida, segundo um dos editores do jornal, não há hipótese de sair matéria criticando a ferrovia.
Procurada para esclarecer os termos do acordo, a Supervia informou por meio da assessoria de imprensa que a ‘gerente responsável pelo assunto não retornou de reunião externa’. Por sua vez, o Infoglobo detém exclusividade de vendas nos trens do metrô do Rio. No entanto, a direção da empresa informou que abrirá mão desta prerrogativa.
Por enquanto, as duas empresas também utilizarão táticas semelhantes para evitar a canibalização dos produtos principais. Elas entopem de compactos as áreas nas quais seus populares são mais fracos. Onde são fortes, diminuem a quantidade de Meia Hora e Expresso.
Ninguém sabe ao certo como ficará esse mercado. De todo modo, essa movimentação provoca desdobramentos curiosos. Até o Jornal do Brasil pretende lançar o que um executivo do jornal classifica como ‘um tablóide, um jornal de banca tablóide’, que parece ter tudo a ver com o mercado de populares.
A disputa pelas classes C e D beira a loucura. Tanto é que depois dos jornais sem repórteres será criado o ‘editor polivalente’. A receita é da mesma fonte do JB, que pediu anonimato. Esse editor, em nova função, deverá se concentrar no tablóide até o seu fechamento, às 20h. Depois disso, o mesmo funcionário se dedicará ao jornal principal.
Tempos modernos.
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Jornalista, professor da Universidade Estácio de Sá e coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica, no Rio