Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Por que o jornalismo está como está

Em palestra do encontro anual do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos [ICIJ, na sigla em inglês], em Londres, no sábado (6/8), o veterano repórter investigativo Philip Knightley, especializado em temas de espionagem, comparou o jornalismo atual àquele praticado nos ‘anos de ouro’ do jornal londrino Sunday Times, na década de 1960. Jornalista australiano radicado em Londres, Knightley, hoje com 76 anos, ficou famoso com o livro A primeira vítima (Nova Fronteira, 1978, esgotado), no qual critica a cobertura jornalística das guerras, desde a da Criméia (1854). Para ele, os correspondentes de guerra são vistos como heróis, mas na realidade criam mitos que servem à propaganda dos governos envolvidos no conflito. E a primeira vítima é sempre a verdade. ‘Afinal, os objetivos dos jornalistas são incompatíveis com os objetivos militares’, disse. O livro foi atualizado em 2000, para inclusão da primeira guerra do Golfo e a de Kosovo. Knightley também escreveu biografia de Lawrence da Arábia, e recebeu duas vezes o British Press Awards. Aqui, a íntegra de sua apresentação na reunião do ICIJ. (Tradução: Dennis Barbosa; intertítulos do OI.)

Por anos tentei conseguir um lugar em Fleet Street e quase desisti. Então, num desses relampejos de sorte que todos os jornalistas necessitam, conseguir encontrar um caminho para entrar no Sunday Times, em 1965. Fiz uma matéria freelance e me deram uma mesa e um telefone.

Na semana seguinte fui para lá e sentei à mesa vazia. Após um dia ou dois, alguém me notou e me deu outra reportagem para fazer. As semanas foram passando e, de repente, aí estava eu, repórter de um dos grandes jornais do mundo, quando este entrava em sua melhor época.

O Sunday Times tinha 350 profissionais na redação para produzir uma edição broadsheet de 48 ou 64 páginas, divididas em dois cadernos, de boa qualidade. Havia tamanho excesso de pessoal que alguns jornalistas passavam semanas sem ver nada seu publicado. Na verdade, alguns nem apareciam durante semanas. O diário gastava dinheiro como água para fazer reportagens investigativas – 2 milhões de libras só em gastos legais na luta pelo direito de dar o escândalo da talidomida. Tinha, em média, uma intimação por difamação por semana. O editor Harold Evans ficava insatisfeito se nenhuma intimação por difamação aparecesse até cada terça-feira, pois tinha a sensação de que o jornal não estava cumprindo seu papel – defender pessoas sem poder daqueles que o detinham injustamente, denunciando a corrupção e fazendo a diferença na vida dos cidadãos comuns. Era um diário que acreditava em alguma coisa, que assumiu perdas terríveis e que lutou por sua integridade editorial.

Um dia, o dono do jornal, um canadense chamado Lorde Thomson, bateu na porta do editor durante a reunião de pauta da manhã e perguntou, em tom de consulta: ‘Digam, rapazes, seria possível incluir os resultados do hóquei canadense aos domingos?’ Houve um momento de silêncio pelo choque. Então, o vice-editor, Hugo Young, disse: ‘Lorde Thomson, esta é uma reunião de pauta à qual o senhor não foi convidado. Se puder mandar sua sugestão por escrito, tenho certeza de que o editor de esportes está disposto a considerá-la’. Na manhã seguinte, havia uma nota para o editor pedindo desculpas por tentar influenciar a política editorial do jornal.

Esta é minha referência. É com base nesta época de ouro que quero avaliar o desempenho da mídia hoje, especialmente dos jornais, pois sei mais sobre eles, e especialmente no campo do jornalismo investigativo.

‘Domínio de total espectro’

Todos que têm algo a ver com jornalismo – seja como produtor ou consumidor dele – perceberam que nos últimos anos algo importante tem ocorrido com esta indústria, uma mudança tão profunda e radical quanto a chegada das novas tecnologias nos anos 1980. As tiragens de jornal têm caído em todo o mundo ocidental. Enfatizo o ‘ocidental’ porque na Índia, por exemplo, elas estão em franca ascensão.

Como dizia, no Ocidente as audiências para notícias e atualidades estão em baixa. Há uma rejeição pública geral aos jornalistas. Nos últimos cinco anos, meio milhão de leitores das classes A e B – educados e com alto nível de renda – desertaram da imprensa britânica de qualidade. Tudo bem, alguém vai dizer que eles só mudaram de leitura, encontraram nos tablóides algo mais rápido e divertido. Temo que não. Eles desapareceram. Trata-se de um fato extraordinário que, dos 11 milhões de adultos de classe A e B, os 11 milhões educados e abonados, cerca de um terço não leia jornal diário algum. Em todo o mundo anglófono, muitas pessoas jovens de diferentes classes sócio-econômicas deixaram o hábito de ler jornais.

Em qualquer outro setor, se os clientes estivessem desaparecendo neste ritmo haveria pânico. Mas, na indústria de mídia, apenas recentemente se começou a colocar estas perguntas duras de responder. O Le Monde, ao apresentar a edição em inglês do Le Monde Diplomatique, deu a sua própria versão: ‘Todos sabemos que a mídia já não é confiável, que é incompetente… que transmite mentiras gritantes como se fossem verdades manifestas’. Estaria a mídia, particularmente a TV, atuando no ramo de ‘produção massiva de ignorância’? Será possível que, quanto mais telejornais assistamos, menos saibamos?

Este é um problema que temos que analisar por dois lados. Se é função da mídia interpretar o mundo para nós, por que a quantidade total de programas noticiosos caiu em 50% nos países em desenvolvimento? Cinqüenta por cento! Talvez isto se deva à extinção do velho correspondente internacional. Vocês devem se lembrar, aqueles especialistas em suas áreas, que sabiam falar a língua local e tinham informações e conhecimentos históricos para explicar o que acontece, não apenas reportar sobre a atualidade.

O professor Virgil Hawkins, da Universidade de Osaka, sugere que a tecnologia acabou com eles. Ele descreve o processo mais ou menos assim: maior competitividade entre os gigantes de comunicação leva ao corte de gastos, fazendo com que dinheiro antes investido na apuração da notícia seja utilizado para comprar e manter equipamentos de alta tecnologia. Isto significa que os correspondentes estrangeiros agora têm de cobrir áreas maiores do globo, perdendo sua característica de especialistas locais. ‘Eles correm de um desastre humanitário a outro, com pouco tempo ou embasamento para apreender o que está por detrás dos conflitos que cobrem.’ Isto tende a gerar relatos em primeira pessoa altamente emocionados, descritos por Claudio Monteiro, da Universidade de Leicester, em sua análise da cobertura da mídia portuguesa no Timor Leste, como ‘jornalismo de boas causas ou jornalismo de afeição’, em que o profissional é o herói de sua própria matéria.

Enquanto isso tudo foi acontecendo, intensificou-se também o interesse dos governos na mídia. É como se os governos tivessem se dado conta, antes dos donos de TVs e jornais, de que o poder, alcance e influência da mídia moderna são tremendos. O grupo CNN está ao alcance de 800 milhões de pessoas no mundo. A BBC World pode ser assistida em mais de 167 milhões de lares em 200 países, a al-Jazira chega a pelo menos 75 milhões de telespectadores apenas no mundo muçulmano.

Para qualquer partido político, a capacidade de ‘lidar com a mídia’ é vista hoje como algo essencial para ganhar poder e, então, uma vez o conseguindo, para mantê-lo e para implementar políticas. O antigo ‘chefe de imprensa’ dos governos não existe mais. Agora há o ‘diretor de Comunicação e Estratégia’, cuja função é administrar a mídia e manipular a percepção pública das ações do governo.

Os EUA apóiam seu ‘poder duro’ – sua capacidade militar – no ‘poder leve’ – sua capacidade de atingir objetivos através dos meios de comunicação. Aqueles que o executam falam de um mundo diferente no jornalismo, em que ‘a estratégia global de mídia’ e a ‘administração de percepção internacional’ utilizam os jornalistas como peças de um novo ‘grande jogo’.

Em sua política externa atualizada, Washington fala de um ‘domínio de total espectro’: os EUA devem almejar a liderança em todas as esferas – militar, produção econômica, negócios, cultura e, significativamente, informação.

A cenoura e o porrete

Num mundo ideal, uma imprensa livre e um exército curioso e cético de jornalistas compromissados deveria manter as democracias e seus líderes na linha, especialmente hoje em dia. E também é quase tão importante que ela atue como fiscal do crescente poder das corporações, especialmente as internacionais. Então, o que impede estes jornalistas? O que deu errado? A lista de motivos é longa.

Propaganda de governo e pressão. Pressão das corporações, incluindo aquelas que detêm os jornais e emissoras de TV. (Por que não percebemos antes que o mundo corporativo, tantas vezes alvo dos jornalistas, encontraria uma maneira de dar o troco?) Pressão legal. Pressão social. E autopressão profissional, já que os jornalistas não são totalmente inocentes do estado em que se encontra a mídia hoje. Vamos tratar destes tipos de pressão um a um.

Aqueles que estão no poder e pensam sobre essas coisas sempre se intrigaram com a seguinte questão: ‘Se podemos manipular a mídia com tanto êxito em tempos de guerra, por que não podemos fazer o mesmo quando há paz?’ Não há dificuldade de fazê-lo em regimes autocráticos. A mídia conta ao público aquilo que o governo quer que se saiba e ponto final. Jornais e emissoras que não seguem as regras do jogo perdem suas licenças ou seus editores vão para a prisão – em alguns casos extremos, são mortos.

Isto não acontece nos países democráticos, mas mesmo assim há maneiras de os governos exercerem algum controle sobre a mídia. A primeira e mais utilizada é o apelo ao ‘interesse nacional’. Nos EUA, os acontecimentos do 11 de Setembro foram usados como argumento para deter jornalistas que ousaram criticar ou questionar seu país. Quando, em julho de 2002, o New York Times publicou três vezes trechos dos planos secretos do Pentágono para invadir o Iraque, a administração Bush acusou o diário de praticar ‘jornalismo inconseqüente’, de ‘colocar vidas de americanos em risco’ e até mesmo de ‘traição’. Mas o distinto jornalista e acadêmico Bill Kovach, nosso colega, diz que é precisamente nesses momentos que os jornalistas têm de ser mais determinados na busca da verdade: ‘Um jornalista nunca é mais comprometido com a democracia, mais engajado como cidadão, mais patriótico, que quando agressivamente realiza seu trabalho de verificar as notícias do dia de forma independente’.

Em outros tempos, a mídia se dispôs a autocensurar-se a pedido do governo. Em 1986, o editor do Washington Post, Benjamin Bradlee, anunciou que nos primeiros cinco meses daquele ano o Post havia retido informações em dúzias de reportagens para evitar risco à segurança nacional. Há outras maneiras de manipular os meios sem usar o ‘risco à segurança nacional’ como abordagem.

O governo da Índia usa a tática da cenoura e do porrete. A cenoura pode incluir hospedagem subsidiada nas chamadas ‘colônias de jornalistas’, viagens ao exterior patrocinadas para jornalistas, assentos em importantes comitês governamentais ou semigovernamentais e até mesmo cargos de embaixador. Como diz o diário Pioneer, de Nova Déli, ‘com recompensas como estas, você se indisporia desnecessariamente com o governo?’ Aqueles que acham que o fiscal de impostos está subitamente dando demasiada atenção às devoluções de impostos dos jornalistas podem ter suas casas ou escritórios revistados. Tudo é calculado para intimidá-los.

DVD de brinde

A batalha entre governo e mídia não é nova. Começou no final do século 19, quando um salto na alfabetização criou milhões de novos leitores para jornais e revistas, preocupando aqueles que estavam no poder, pois isto lhes poderia custar o controle sobre o eleitorado. O que é novo e preocupante é o crescimento da pressão legal para fazer os veículos de comunicação desistirem de fazer governos e corporações se sujeitarem à investigação e ao controle público.

Altas indenizações por difamação têm forte efeito inibidor sobre a reportagem investigativa. Chuck Lewis nos contou da batalha que travam o Center of Public Integrity (Centro para Integridade Pública) e o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos para obter seguros contra processos de difamação, repelindo a ameaça destas ações. Apenas para lembrá-los, há muitas companhias americanas de seguros que têm como regra que, se uma empresa de mídia tem mais de três processos de difamação pendentes – independente do mérito destas –, sua apólice se anula. Sem seguro contra processos por difamação, o Centro não podia arriscar-se a seguir com suas atividades. Sua companhia de seguros já havia pago mais de 1 milhão de dólares em custos legais em apenas um caso, que seus advogados dizem que deve ser rejeitado pela corte.

Advogados obviamente sabem da regra do ‘três intimações por difamação e você está fora’. Se quiserem que uma história não saia, uma das primeiras coisas que fazem é ver quantas intimações a organização de mídia em questão tem. Se tem dois, entram com um terceiro, sabendo que, mesmo que seja frívolo, terá o efeito de inibir o tema.

Os escritórios americanos de advocacia, sempre dispostos a levar a lei a seu limite no intento de deter os jornalistas investigativos, têm usado manobras por muitos consideradas ainda mais efetivas que ações por difamação. Eles oferecem às corporações ‘ataques preventivos’ contra veículos malcomportados. Seu conselho vai pela seguinte linha: ‘Se descobrir que há jornalistas investigando a seu respeito, ou se eles lhe abordarem, não espere até a notícia sair para processá-los por difamação. O dano já estará causado. Reaja imediatamente e pare o assunto antes que seja publicado. Nós sabemos como fazê-lo’.

Os meios para conseguir esses objetivos incluem um exame da estrutura financeira da organização jornalística para saber se é possível fazer pressão por meio da companhia matriz ou alguma associada. Examina-se seu faturamento com publicidade para saber se um grande anunciante pode ser convencido a fazer pressão e compila-se um dossiê com o histórico pessoal do repórter investigativo para ver se ele ou ela podem ser intimidados a desistirem da pauta.

Passemos agora à autopresssão pessoal. As novas tecnologias chamaram a atenção para o custo da produção de noticias – fazendo com que se tomasse isso como algo separado do custo de manter um jornal ou um programa de TV. Os contadores – pessoas que de fato administram a indústria de mídia – passaram a cortar os orçamentos para produção de notícias. Por todo o mundo, sucursais internacionais foram fechadas e correspondentes chamados de volta a casa.

Em todo o mundo ocidental, os jornalistas, que deveriam ter se rebelado contra a degradação do noticiário internacional, foram seduzidos. Alguns se tornaram colunistas bem pagos, celebridades eles mesmos, difundindo suas opiniões em vez de fatos. Outros viraram redatores que escrevem sobre moda, relacionamentos, fofocas, turismo, beleza, jardinagem e bricolagem, temas que, ainda que por vezes interessantes, não podemos comparar com a importância de analisar a condição humana no começo do século 21, que é o que os jornalistas sérios tentam fazer.

Um proprietário de grupo de mídia britânico chegou ao ponto de dizer que não precisa de jornalistas em seus diários. Bem, ele admitiu que precisava de uns poucos para colocar as notícias nos seus jornais e um ou dois colunistas de celebridades. Gastar dinheiro com jornalismo, disse, é desperdício. Não há como medir a diferença que faz nas vendas o gasto extra com conteúdo editorial. Por outro lado, defende ele, é possível medir exatamente a diferença proporcionada pelo dinheiro investido em promoção. É gastar meio milhão de dólares em marketing e dar de brinde um DVD com cada exemplar, e logo é possível saber quantas cópias extras foram vendidas. Parece funcionar, pois o último balanço desta companhia revelou que ele estava pagando a si mesmo 2 milhões de dólares por semana.

Fontes de financiamento

Não somos complacentes. Estamos preparados para observar nosso desempenho e tentar melhorar. ‘Reportando o mundo’, um projeto conduzido pelos Conflict and Peace Forums de Taplow Court, Buckinghamshire, investiu muito tempo e esforço para colocar numa mesa de debates aqueles jornalistas que cobriram grandes conflitos e crises em anos recentes, encorajando-os a criticarem seus trabalhos mutuamente de forma construtiva. Mais de 200 editores, redatores, produtores e repórteres ajudaram a produzir uma lista prática para elevar os padrões de equilíbrio, imparcialidade e responsabilidade na cobertura de temas internacionais. A maioria desses encontros foi programada pelo European Center of the Freedom Forum, sediado em Londres. A instituição matriz deste centro, a Freedom Association de Arlington, nos EUA, é uma fundação apartidária, sucessora daquela fundada em 1935 pelo editor Frank Gannett, que tinha o slogan ‘Imprensa, discurso e espírito livres para todas as pessoas’.

O centro de Londres era um ponto de referência para jornalistas de todas as cores, credos e convicções políticas, unidos pela preocupação de que o jornalismo deve continuar sendo mais que celebridades, trivialidades, confissões e histórias em quadrinhos. Por ironia, seis semanas após o 11 de Setembro, a matriz dos EUA o fechou, alegando que precisava do dinheiro para um museu do jornalismo no centro de Washington!

Mas o jornalismo investigativo ainda não morreu. Vejamos o que é que deveríamos estar fazendo agora. Temos de convencer as organizações jornalísticas de que há coisas mais importantes que o lucro e o preço das ações. Que uma contabilidade acirrada, corte de gastos e investimento em promoções não farão nenhum editor ou proprietário ganhar menção em livros de história.

Precisamos que o interesse público seja defendido em todas as ações legais impetradas contra a mídia. Os jornalistas deveriam ser capazes de defender uma reportagem mostrando que o que ela revelou é tão importante para o público que todo o resto é irrelevante – algo que, graças à Corte Européia de Direitos Humanos, o Sunday Times conseguiu fazer no caso da talidomida.

Quero dizer que se uma empresa farmacêutica comercializa agressivamente uma droga que deforma bebês em gestação, a forma como os jornalistas conseguiram as evidências e se eles difamaram os executivos da companhia – e até mesmo se a publicação prejudicaria o enganoso conceito de ‘interesse nacional’ –, caem para segundo plano, atrás da necessidade de informar as pessoas.

Podemos apoiar a mídia que realiza jornalismo investigativo e parar de comprar aquela que não o faz. Podemos procurar outras fontes de financiamento para nossas investigações. E, se tudo mais falhar, podemos ir pelo caminho de Jan Mayman e, de alguma forma, financiar a nós mesmos. Não perdemos nosso poder.