A homenagem prestada ao diretor de Opinião do jornal O Estado de S. Paulo, Ruy Mesquita, semana passada, na abertura do 7º Congresso Brasileiro de Jornalismo Empresarial, Assessoria de Imprensa e Relações Públicas, pode representar uma oportunidade privilegiada para a observação da imprensa brasileira neste momento de transição.
No palco, entre o governador Geraldo Alckmin e a prefeita Marta Suplicy, ‘doutor Ruy’, como é chamado por seus escudeiros, fez uma longa e penosa – pelo efeito dos anos sobre sua saúde – digressão sobre a história recente de sua família, que por três gerações foi a mais completa tradução do poder das elites paulistas. Contou a saga de seu avô, Júlio, durante a Primeira República, depois a participação de seu pai, Júlio Filho, na luta contra a ditadura de Getúlio Vargas, e concluiu com sua própria atuação, junto com seu irmão Júlio Neto, nos eventos políticos que começaram com a derrubada do governo João Goulart e, posteriormente, seguiram na resistência contra a censura imposta pela ditadura que lhes escapou do controle, culminando com o mergulho no vórtice do mundo virtual e a maior crise já vivida pela imprensa.
Ruy Mesquita mal se referiu à quarta geração, aquela de cujas mãos se esvai o controle do tradicional jornal paulista. Saudado pelo filho mais velho, Ruyzito, e por Miguel Jorge, que por mais de 10 anos foi seu executivo de confiança, como homem de aguçada visão política, o velho jornalista desvelou sua tristeza pela convicção de que a imprensa que deu um século de poder a sua família está em vias de desaparecer. Para ele, a mistura dos interesses de negócio com o negócio do jornalismo é a tendência inevitável que irá acabar com a imprensa brasileira como a conhecemos.
Ruy Mesquita chamou de ‘murdoquização’ da imprensa – com certeza se referindo ao empresário americano de origem australiana, Keith Rupert Murdoch, dono do maior império de mídia do mundo – o processo de condicionamento das escolhas editoriais aos interesses de negócios que, na sua opinião, está reduzindo as chances de sobrevivência dos jornais tradicionais. Ruy Mesquita entende que não há modos de uma empresa jornalística como o Grupo Estado concorrer com conglomerados empresariais de múltiplos interesses, favorecidos por muitas fontes de receita e beneficiados pela oferta de meios variados ao mercado.
Seu olhar para o passado revelava o orgulho sem pejo de quem sempre guiou o jornal – e as opiniões circundantes – com suas convicções pessoais e as de seu grupo familiar. Seu olhar para o futuro traía uma amarga decepção e um inequívoco desalento com as poucas possibilidades de perpetuação da obra de que se orgulha. Ainda uma vez, na solenidade, foi relembrada a série de reportagens e estudos econômicos que fez publicar no Jornal da Tarde, há duas décadas e meia, nos quais acusava-se o governo militar de haver transformado o Brasil numa ‘república socialista soviética’.
De cima para baixo
Há controvérsias – sempre houve – sobre a interpretação liberal da extremada intenção de controle da ditadura sobre a economia brasileira, mas, assim como parece nunca haver duvidado de qualquer de suas convicções, mesmo daquelas que um dia ajudaram a tanger o país rumo ao abismo da ditadura, ele segue sem desvios, orgulhoso de suas escolhas. Ruy Mesquita é um típico burguês do século passado, e cumpre bem o seu papel.
É típica de sua casta essa forma de viver sobre os trilhos de princípios que ignoram circunstâncias e conveniências. Muitos de nós, que nos fizemos jornalistas, também agimos assim. Mas nem todos fomos ungidos, como ele, com a responsabilidade sobre a permanência de uma imprensa independente e afirmativa, ainda que contraditória. Nada se disse sobre a hipótese de a essa responsabilidade corresponder certa flexibilidade e tolerância.
Nenhuma palavra sua ou de quem o saudou sobre os passos seguintes, sobre o que será o amanhã da imprensa que contou até aqui a história do Brasil sob o ponto de vista dos poderosos. Nenhuma referência a uma possível correlação entre arrogância e decadência. Nem sinal de alguma percepção sobre a falta de uma visão empresarial que conduziu a nossa imprensa mais tradicional ao beco sem saída em que se encontra. Exatamente como nas velhas fazendas de café que, ao longo da Via Dutra, foram se transformando progressivamente em sítios, subúrbios, favelas, o que era pura nobreza também pode soar como teimosia e alienação.
As palavras amargas de Ruy Mesquita, ao mesclar um tom de epitáfio ao relato dos feitos de sua família, mostram-no resignado, mas não alienado, e ainda teimosamente agarrado a um idéia de democracia que foi muito mais própria de seu avô do que poderia ser de seus filhos e netos. Não a democracia horizontal e igualitária das utopias, mas uma democracia burguesa que se educa de cima para baixo, num sentido impositivo de quem se educou para quem precisa ser educado.
Vertigem de cenários
De certa forma, não se pode escapar a certa ironia quando se recorda que o seu modelo de demônio, Rupert Murdoch, tem um perfil semelhante. Ao contrário do que pensa muita gente, Murdoch não é um simples aventureiro australiano, uma espécie de Crocodilo Dundee que resolveu ser dono de jornal. Seu pai, sir Keith, também era proprietário de uma rede de jornais influentes em Melbourne, Adelaide e outras regiões. Rupert foi educado em Oxford e assumiu a direção dos negócios da família muito jovem, aos 22. Há dois anos, numa de suas raras entrevistas, contou que também recebeu um legado de seu pai: ‘Ele me deixou com o claro senso de que mídia é um negócio diferente’, disse.
Talvez seja exatamente isso, o sentido de ‘diferente’, o que mais os distancie, além dos estilos de vida pessoais. E uma interpretação do nível de ‘diferenças’ que iremos tolerar pode ser a chave para entendermos como será a imprensa daqui para a frente. Talvez Murdoch se distancie tanto de seu modelo original que acabe um imperador de tudo que se refere a comunicação, menos da imprensa. E talvez venhamos a ter uma imprensa mais republicana, mais democrática, que afinal dispense imperadores e seus acólitos.
Quando, aparentemente, se esfacela o modelo de jornalismo que se sustentou nesse conjunto de convicções burguesas, e o Brasil, com o mundo, mergulha na vertigem dos cenários hipermediados, a figura imperativa de Ruy Mesquita sugere a imagem de um retrato que insiste em dividir a parede com a tela de cristal líquido, como a nos lembrar que talvez seja, mesmo, da natureza da melhor imprensa, essa ambigüidade, essa impossibilidade de definição, essa edição que nunca se acaba, esse pescoção sem deadline.