O caso do avião que não decolou do Brasil rumo à Índia em busca de vacina para a Covid-19 na semana passada, ao contrário do que previam e asseguravam os anúncios oficiais, revela aspecto pouco falado da disseminação de informações falsas na Internet.
Governos de extrema direita adotam a mentira de forma sistemática em suas declarações, evitam entrevistas e mobilizam redes sociais para a criação de ‘fatos alternativos’, além de hostilizar empresas jornalísticas e seus profissionais. O ataque à justiça e à imprensa faz parte de um pacote mais amplo de derrocada democrática, como já apontaram Steven Levitski e Daniel Ziblatt em Como as democracias morrem (Zahar, 2018).
Tudo isso já foi evidenciado no caso Trump e também na atuação da família Bolsonaro em pesquisas e monitoramentos recentes de órgãos jornalísticos e de cidadania. A máquina continua em plena operação e aumenta o questionamento sobre o papel das empresas Facebook e Twitter nisso tudo.
Nem mesmo a pandemia e a morte de mais de 215 mil pessoas no Brasil frearam a estratégia deliberada de seu presidente em municiar apoiadores, extremistas e replicadores de conteúdo com informações falsas, irresponsáveis e de risco evidente à vida. Esse é um dos pontos relatados em pesquisa divulgada pela jornalista Eliane Brum no El País na quinta-feira (21), no que seria uma estratégia de propagação do vírus.
Acontece que a avalanche de desinformação vem também de outro lugar, menos indicado até aqui: as notícias nas redes e sites oficiais do Governo Federal, como, por exemplo, na página de notícias do Ministério da Saúde. Em 21 de janeiro, o Ministério retirou do ar o aplicativo TrateCov, que fazia orientações para diagnóstico e tratamento da doença. Embora, segundo o órgão, o aplicativo fosse direcionado aos profissionais da saúde, qualquer cidadão tinha acesso — e, independente de idade, comorbidades e sintomas que informasse, recebia como sugestões o mesmo pacote de medicamentos e nas mesmas quantidades.
A presença da desinformação em diferentes instâncias pode indicar cumplicidade entre redes pessoais das fontes políticas, o universo de militantes e extremistas, e o espaço institucional bancado por dinheiro público para assegurar informação estatal e governamental – serviço de transparência indispensável à gestão da vida coletiva em democracias.
Aos fatos
Ninguém coloca uma aeronave na pista de qualquer aeroporto sem plena certeza do destino e objetivo do voo. Muito menos quando o país inteiro está de olho, na expectativa de uma solução para a maior crise sanitária já vista.
A primeira notícia veiculada sobre o assunto no site do Ministério da Saúde, divulgada pelo Twitter, atesta a convicção. Na noite do dia 13 de janeiro, o órgão anunciou em suas redes oficiais: “O voo da empresa aérea Azul será antecipado e sairá do Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), às 13h desta quinta-feira (14) com destino ao Recife (PE), onde partirá direto para a cidade indiana de Mumbai. As vacinas estão previstas para chegar ao Brasil no próximo sábado (16) pelo Aeroporto do Galeão (RJ)”.
O texto da assessoria do Governo Federal assegura, portanto, um destino certo para o voo e presume que a entrega das vacinas já está certa – o que, bem sabemos, não veio a se confirmar tão cedo. A informação do parágrafo seguinte da notícia, no entanto, afirma categoricamente que a compra foi realizada e faz parte um cronograma aparentemente assegurado de vacinação: “As doses foram produzidas pelo laboratório indiano Serum e compradas pelo Ministério da Saúde. A vacina da AstraZeneca/Oxford será distribuída aos estados em até cinco dias após o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para, assim, dar início à imunização em todo o país, de forma simultânea e gratuita”.
Essa foi a informação básica veiculada no espaço oficial do Ministério da Saúde, da Agência Brasil e demais canais de informação estatal do Governo Federal sobre a transação. Para não deixar dúvidas, o final do texto reforça: “O sucesso da aquisição das doses junto à matriz britânica e à produtora indiana da vacina demonstra o excelente momento das relações Brasil-Reino Unido e Brasil-Índia e a solidez dos relacionamentos estratégicos que mantemos com esses dois países”.
Uma semana depois, notou-se que exatamente esse último ponto era um impeditivo para a plena aquisição das vacinas em solo asiático. Diversas fontes da saúde (várias ouvidas pela jornalista Renata Lo Prete no Podcast O Assunto) contestaram exatamente aquilo que a nota oficial dá como certo e factual — o “excelente momento” da relação entre os três países. É onde o texto da assessoria desliza para o ramo dos panfletos ideológicos, por assim dizer.
Retornemos ao episódio. No dia 14 de janeiro, as informações oficiais dão prosseguimento ao périplo da aeronave – detalhes ‘logísticos’ habituais dignos de atenção, dada a particularidade da carga que o avião estaria indo buscar. Em momento algum a comunicação oficial menciona a hipótese da compra não ser entregue ou de não haver pleno acordo entre as partes na operação internacional.
No início da tarde daquele dia, as publicações do Ministério da Saúde reforçam: “o avião da empresa aérea Azul decolou do Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), para buscar na Índia dois milhões de doses da vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca/Oxford. O imunizante foi adquirido pela pasta junto ao laboratório indiano Serum Institute para garantir o início da vacinação dos brasileiros de forma simultânea e gratuita”.
O texto estabelece como dado factual a compra já realizada pelo governo brasileiro. Restaria alguma dúvida tão somente sobre a data exata de retorno da aeronave (e não da entrega da mercadoria!) em função de negociações com a empresa aérea Azul e não com o governo do país asiático: “A data de retorno do avião ao Brasil, com a carga de vacinas estimada em 15 toneladas, ainda está sendo avaliada de acordo com o andamento dos trâmites da operação de logística feita pelo Governo Federal em parceria com a Azul. O pouso está previsto para ocorrer no Aeroporto Internacional do Galeão (RJ).”
O realismo jornalístico começa a desmoronar, como ato falho, ao final do texto: “O Ministério das Relações Exteriores, por meio da Embaixada em Nova Delhi, está em contato constante com as autoridades indianas, em seguimento à carta do Presidente Jair Bolsonaro ao Primeiro-Ministro Narendra Modi, de 8 de janeiro, para assegurar que a chegada da aeronave seja autorizada e que a licença de exportação da carga seja concedida sem percalços.”
Tudo isso viria a ser desmentido a seguir pela simples realidade. O Brasil sequer constava na lista de países para quem a Índia exportaria vacinas, ao menos num primeiro momento. Como hoje se sabe, o avião não apenas atrasou — surgiu então a justificativa aparentemente técnica de “questão logística internacional”, replicada em espaços jornalísticos como explicação plausível para o atraso — como sequer decolou rumo à Índia, uma vez que a entrega da compra não estava certa e que eram inúmeros os problemas diplomáticos (escondidos pelo Governo e silenciados pelas notícias oficiais). Após ampla repercussão do assunto ainda no dia 13 é que o texto oficial inclui ‘de forma escondida no texto’, como se diz, a necessidade de uma licença. Sendo que o avião já estava adesivado naquele momento e na pista em solo brasileiro.
Em outras palavras, significa que o site oficial do Governo Federal, chancelado pela assessoria do Ministério da Saúde, utilizado para consulta e apuração de inúmeros órgãos jornalísticos nacionais e internacionais num momento de pandemia, veiculou informação enganosa como se fosse certeira e verificada. A notícia atestou que a compra estava não apenas feita como na fase final de entrega, bastando o ajuste de ‘detalhes logísticos’.
No entanto, o Governo Federal sabia desde o início que não havia nada já resolvido com o referido laboratório asiático. Ainda assim, colocou o avião na pista, como isca, e tentou criar um cenário, dizendo ter feito aquilo que não fez — para depois sair como vítima, dizendo-se surpreso com os impasses. Sem falar que tudo isso (do avião a entrega de vacinas) envolve recursos públicos, cuja transparência está prevista em lei.
Utilidade pública em risco
Uma vez que a polêmica sobre o episódio ainda não cessou, cabe refletir quantos não foram os títulos jornalísticos naquela semana, os textos e narrações em rádio e TV que repetiram o teor das notas oficiais e asseguraram a ouvintes, espectadores e leitores a facticidade da trama ficcional. Não tinha entrega de vacinas nem voo. A crise dentro da crise representada pelas mortes no Amazonas por falta de oxigênio viria a tirar o foco momentaneamente sobre a transação com a Índia – sendo que dali uma semana viria o desfecho, com o país asiático enviando a mercadoria. O governo da Índia autorizou a exportação comercial de vacinas de Oxford (2 milhões de doses) contra a covid-19 apenas em 21 de janeiro.
Ao produzir informação enganosa no site oficial do Estado em forma de notícia, a desinformação passa a adentrar a cadeia noticiosa das empresas jornalísticas como se fosse fato e não hipótese, complementada ou contrariada por opiniões e declarações (a conta do Twitter do presidente, por exemplo). Existe aí uma engrenagem mais complexa do que a simples replicação de informações falsas em redes sociais particulares de fontes políticas, de militantes e extremistas.
Quanto ao jornalismo, o episódio do avião que não decolou (uma vez que não havia destino nem objetivo assegurado) prova que, em tempos de pandemia, o fatalismo no noticiário é tão prejudicial quanto a euforia ou a torcida desmedida para que as coisas aconteçam de pronto (a cura da doença!).
A desconfiança ainda é um ingrediente a ser melhor inserido no trabalho jornalístico brasileiro, sobretudo em torno da cobertura do poder político mais centralizado. Vários são os espaços que começam a atentar para isso. Apontar a inconsistência de dados e falas oficiais deve ser parte dos esforços de cobertura jornalística nesta crise que já dura um ano. Cabe indagar qual a responsabilidade do órgão oficial de comunicação do Governo Federal na produção desse tipo de desinformação onde deveria existir utilidade pública.
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Rafael Schoenherr é jornalista, doutor em Geografia e professor do Programa de Pós- Graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Gisele Barão da Silva é jornalista e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).