Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O estado francês e sua proposta de redução do seguro social e dos serviços públicos

(Foto: Reprodução)

No programa InfoCLACSO, de 31 de maio de 2023, intitulado “El derecho a la previsión social”, o entrevistado Jean Jacques Kourliandsky abordou a recente reforma da lei de aposentadoria na França, decretada por Emmanuel Macron, que aumenta o tempo para aposentadoria, de 62 anos para 64 anos como idade mínima, e de 42 para 43 anos de trabalho para recebimento do valor integral do salário, com direito a aposentadoria proporcional a partir dos 67 anos.

Comparando com outros episódios de manifestações públicas, tanto do presente quanto do passado em diferentes países, os protestos e manifestações na França são conhecidos por sua forte capacidade de mobilização em nível sindical e pela grande capacidade de convocação e de participação popular, tal como temos presenciado nas mobilizações recentes, nos vários protestos ocorridos nas ruas do país. O que ocorreu especialmente nestas manifestações recentes que incendiaram as massas e encheram as ruas em prol da luta contra a atual reforma previdenciária, feita por decreto, que aumenta a idade da aposentadoria?

Jean-Jacques Kourliandsky: A razão de toda essa ebulição é justamente o caráter brutal dessa reforma, e não em função de ela ter sido feita por meio de decreto. A Constituição Francesa da Quinta República tem uma particularidade que garante muito espaço ao executivo para tomar decisões sem ter de lidar com o Parlamento para isso. Em sua história, a Constituição manteve o artigo 49, parágrafo 3, e que foi utilizado no passado uma centena de vezes e por muitos governos sempre que estavam diante de alguma situação mais complicada, quando estavam em apuros.

Trata-se de uma reforma brutal por ser uma medida desnecessária. O sistema previdenciário está equilibrado e a população francesa satisfeita com ele tal como está em vigor. Por isso a disputa ganhou as ruas e o Parlamento. Emergiu dessa discussão uma proposta de lei, elaborada por um grupo parlamentar, que visava reverter essa reforma argumentando que ela deveria ser cancelada. No entanto, a proposta foi rapidamente refutada, mobilizando-se para isso outro artigo da Constituição, o de número 40, no qual se afirma que o Parlamento não pode propor uma lei que constitua uma carga financeira suplementar para o governo. Esta carga seria equivalente à cifra de 15 bilhões de euros, tal como tem sido divulgado.

Como o sistema está equilibrado, isso quer dizer que o objetivo do governo, que informou que o déficit que justifica o decreto ocorrerá provavelmente em um horizonte de 3 a 4 anos. Esse déficit não existe no momento. O governo, na verdade, precisa de dinheiro. Não se trata, portanto, de um déficit previdenciário, mas de uma forma de fazer caixa para outros fins. O presidente Emmanuel Macron, desde a sua chegada ao poder, priorizou na economia uma política da oferta e não da demanda, que foi bastante concessiva no que diz respeito a abonos fiscais às empresas.

Assim, o orçamento do Estado começa a entrar em déficit. Não podemos ignorar os efeitos da pandemia, mas também não podemos perder de vista esses abonos e isenções fiscais que foram concedidos às empresas. Ademais, o governo tem como objetivo potencializar ações de combate à mudança climática através de projetos com algumas empresas que estão trabalhando nisso. De todas as possibilidades de gerir o orçamento do país, um dos caminhos que lhe pareceu mais curto foi justamente este, o da reforma previdenciária.

Este movimento, é importante lembrar, vem suceder um outro, anterior, e que eclodiu não faz muito tempo, nos anos 2018 e 2019, durante a primeira gestão à frente da presidência de Macron: o movimento dos coletes amarelos. Este movimento resulta da insatisfação com outros cortes do orçamento do Estado, que optou por substituir funcionários de carne e osso por atendimentos digitalizados, o que representou o fechamento de agências dos correios, de escritórios fiscais, de escolas e de pequenos hospitais. A justificativa usada pelo governo para esse tipo de reforma era a de que um hospital pequeno não tinha a possibilidade de cuidar bem das pessoas, como outros mais equipados e maiores, mas que se encontravam por vezes a 30 km de distância de onde residiam algumas comunidades. Além disso, afirmava que era preciso que as pessoas se adaptassem e pagassem seus impostos ou realizassem outros trâmites por meio do computador, de forma digital.

Mesmo com esses argumentos, chega um momento em que as pessoas se dão conta de que estão em uma espécie de armadilha, e percebem que o que o Estado está propondo é na verdade uma redução de tudo aquilo que foi conquistado desde 1933, no primeiro governo da Frente Popular, e em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial, quando então foi criado o programa de seguridade social e  todo o sistema do Estado de Bem Estar social na França, conquistas estas que outros presidentes têm atacado, mas sobretudo este, tentando desmontá-lo sob o rótulo da palavra “reforma”.

As pessoas começaram a entender que, na verdade, estão perdendo direitos decisivos, com a redução da qualidade desses programas de antigamente. Então, a luta atual se situa neste contexto. Não podemos nos referir a essas manifestações atuais como algo isolado, mas sim integrado neste movimento global que visa pro todos os meios desarmar o estado de bem-estar social, diminuir seu alcance, descredibilizar o Estado em benefício do setor privado. Cada dia surgem novos elementos desse desmonte, como a privatização progressiva do sistema de transporte de Paris.

Este caminho que você nos conta parece o manual habitual do neoliberalismo em qualquer parte do mundo e que consiste na redução do Estado e na transferência de dinheiro dos setores do povo trabalhador para os setores empresariais e especulativos. Parece o manual que vimos regular as práticas em muitas partes de América Latina.

Jean-Jacques Kourliandsky: Exatamente isso. É a cartilha derivada do “Consenso de Washington” que se estende a quase todas as partes do mundo. Além disso, temos um aspecto particular, o “Consenso de Bruxelas” na Europa. Com isso, é preciso entender que o Estado de 2023, seja francês, alemão, italiano ou belga, não é o Estado dos anos 1950. Estamos também submetidos a uma série de normas, às vezes chamadas de Constituição Europeia, que suspendem e bloqueiam toda e qualquer iniciativa de alternativa progressista dos Estados.

Isso resulta em uma perda de conteúdo, de densidade, da Democracia, a partir do momento em que, por exemplo, um país como o nosso não pode desvalorizar sua moeda, já que ela é controlada por um Banco Central “Independente”, como também o são as taxas de juros praticadas no país. Temos ainda regras que impedem os Estados de atingirem um déficit, uma inflação, um endividamento superior a algumas cifras controladas pela Comissão Europeia, de modo que a Comissão diz aos Estados quando eles estão saindo do caminho fixado pelos acordos e estipulam o que convêm mudar na política de modo a voltar à raia estabelecida.

Portanto, estamos em um sistema sob o Consenso de Bruxelas, que torna muito mais complicado imaginar alternativas progressistas quando se tem regras que reduzem as possibilidades de uma alternativa progressista real. Isso permite entender a violência que emerge em algumas dessas manifestações, tanto aquela das manifestações dos coletes amarelos em 2018 e 2019 quanto estas, atuais, ocorridas ao longo das mobilizações contra a reforma da lei de aposentaria.

Temos testemunhado que, frente à desesperança e ao descrédito da política, a direita e a ultradireita ganham espaço. Vemos isso em vários lugares de nossa América, com muita força e a nível preocupante. Você acha que com estas medidas, a direita ganha muito mais dividendos, ela se fortalece, de modo que os protestos se tornam palco dos setores conservadores capazes de recuperar esses eventos e de se beneficiar com a ocupação de setores de poder, o que levaria a população a um debate mais profundo sobre as formas de atuação da direita, seus compromissos, suas dívidas, e a forma como tem se beneficiado e crescido na democracia, pelos meios democráticos que, com suas ações, elas próprias corroem e colocam em xeque?

Jean-Jacques Kourliandsky:  São duas as consequências políticas e sociais de todo este movimento, de toda esta mobilização que perdura, encampada nas ruas e pela oposição no Parlamento. A primeira, e diferentemente do movimento dos coletes amarelos, que não tinha líder, não tinha estrutura, não tinha organização e que por isso desapareceu tal como apareceu – de repente –, este movimento atual foi canalizado de uma forma inesperada pelo movimento sindical.
Tradicionalmente, o movimento sindical francês é dividido. Na França, podemos nos referir a três grandes sindicatos: a CGT, historicamente ligado ao Partido Comunista, a CFDT, de origem social cristã, e a Força Obreira, que surge de uma cisão histórica da CGT durante a Guerra Fria. Esses sindicatos sempre tiveram problemas para se coordenarem.  Neste caso, nos movimentos contra o decreto presidencial, constituíram uma intersindical, organizaram manifestações que claramente souberam sintetizar o que as pessoas demandavam, aceitaram dialogar com representantes do governo para explicar-lhes o que queriam. O governo tentou dividi-los, mas não foi possível.

A outra diferença é a de que estas manifestações foram majoritariamente pacíficas. Os episódios de violência ficaram a cargo de um grupo minoritário, de anarquistas, e realizados ao final das manifestações sindicais. Realizaram uma pesquisa no final da primeira etapa do protesto e 58% dos franceses declararam apoiar o Movimento Sindical, que soube esclarecer às pessoas o que o movimento buscava com as manifestações e que soube também encampar uma manifestação democrática, de protesto na rua, mas sem violência, organizado, aceitando dialogar com o governo, mas sem concessões fáceis, dialogando para dizer-lhes “Não! Queremos outra coisa”.
Politicamente, em nível geral, o apoio aos partidos políticos é de 14%. E o único partido, a única personalidade, que sai fortalecida pelo movimento, é a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, da extrema-direita. Esse fenômeno não é exclusivo da França. Assistimos hoje, na Suécia, um governo de ultradireita, na Itália também, nas últimas eleições locais na Espanha subiu fortemente a direita tradicional e também a ultradireita com o partido Vox. Esse cenário resulta justamente de uma falta de resposta das esquerdas ao Consenso de Bruxelas e aos problemas dele derivados.

A identidade da esquerda, nos países europeus, assumiu como pauta principal as temáticas societais, como as demandas da comunidade LGBTQIAPN+, o problema ecológico, os problemas de discriminação, todos estes igualmente legítimos, mas se esqueceram das temáticas sociais, uma vez que sabem mais como garantir essas conquistas sociais do passado. E os únicos partidos que, ao menos da boca pra fora e de maneira populista dizem “tem que parar tudo isso”, são os partidos de ultradireita. Com a particularidade de que na França se acrescentou a esse caldo uma pitada de responsabilização pelos problemas do povo o da vinda de estrangeiros, ao gosto da discriminação dos migrantes, sob o título de que a extrema-direita mais do que discriminar apenas manifesta sua preferência nacional. Com esse discurso, conseguiram captar o voto dos eleitores tradicionais, das camadas populares, do operariado, que antes se identificavam com os comunistas ou socialistas.

Os feudos eleitorais principais de Marine Le Pen são o norte e o leste da França, ou seja, as antigas regiões industriais que foram duramente golpeadas pelas crises dos últimos anos. Com suas pautas, ela aparece como uma defensora social, que luta pelos direitos das pessoas, porque soube nos últimos anos separar sua imagem daquela da ultradireita tradicional do partido Frente Nacional, que seu pai capitaneou durante décadas.

O panorama obviamente é muito complexo a nível político, mas dá a sensação de que não difere muito do que ocorre em outras partes do mundo. Se tivesse que fazer uma análise a longo prazo, a 55 anos de maio de 68, qual é a linha que ligaria o que hoje vemos nas manifestações de rua, nas mobilizações sociais, e qual seu impacto? O que poderia ser retomado daquele maio de 68 para pensarmos a atualidade

Jean-Jacques Kourliandsky: Era um outro contexto. Em 1968, o cenário político contava com uma direita nacional, patriota, com De Gaulle, que defendia um sentido de nação, de Estado, que desapareceu de nosso horizonte dos dias atuais. Eu diria até que é bastante simbólico o esforço de se fazer esquecer essa tradição justamente o mesmo partido do atual Presidente que decreta uma lei muito curiosa, de uma mudança que a maioria não demandou, e que obriga todos os municípios com cerca de 1000 ou 1500 habitantes a colocarem a bandeira do Mercado Comum Europeu na fachada dos edifícios. Isso reflete o conflito social que existe na França. Há os que se sentem bem com a globalização e há os que praticam o que se chama de separatismo social, que é um problema cada vez mais forte entre as classes abastadas, que colocam seus filhos em colégios privados para separá-los dos filhos dos migrantes ou das pessoas socialmente menos ricas.

Estamos em um contexto que não existia em 68, em que havia um serviço púbico e uma presença do Estado muito fortes. Agora estamos em outro momento, sobretudo depois da ampliação do Mercado Comum, da União Europeia, em que vigoram outros princípios e outras definições acerca do papel do Estado.

Eu diria que a melhor definição do que está acontecendo na Europa agora foi a que deu o Secretário de Defesa dos Estados Unidos, David Rumsfeld, em 2003, quando França, Alemanha e Bélgica recusaram, no Conselho de Segurança da ONU, a invasão dos Estados Unidos ao Iraque. Ele disse que isso iria mudar, que isso ainda era a velha Europa, e que com a ampliação da União Europeia viria uma nova Europa muito diferente. A esquerda, diferentemente dos anos 70, não tem horizonte, está totalmente paralisada pelo obstáculo das leis que impedem toda forma de alternativa que seja também uma alternância, não apenas de rostos, mas especialmente de mudanças reais.

As pessoas começam a ver isso hoje com mais clareza. Nas últimas eleições parlamentares do ano passado houve 53% de abstenção. Esse é o resultado. As pessoas se deram conta de que elegem deputados que têm carros muito bons, com um bom volante, mas sem motor: o motor está em Bruxelas. Isso fomenta um distanciamento cada vez maior entre os eleitores, o povo, e as autoridades. Quem é a autoridade? São as multinacionais, a Comissão Europeia. São eles têm capacidade de mover as coisas, e não os representantes que pedem nosso voto. Por isso, a crise do governo atual é uma crise do governo democrático também.

Para fecharmos essa entrevista, a atual Europa parece presa a uma situação muito complexa, profundamente dependente da questão energética, mas também com um conflito bélico em suas fronteiras, e do qual é muito difícil sair. Em que situação se encontra a Europa, depois de tudo isso que nos comentou, no marco do conflito na Ucrânia?

Jean-Jacques Kourliandsky:  Em certo momento, com Donald Trump, a Europa dispôs de um espaço de autonomia possível. Trump havia decidido retirar os seus soldados da Europa para dedicar-se ao conflito com a China. Com Biden chegou outro tipo de política. Os EUA novamente voltaram-se para a Europa por meio do conflito entre Rússia e Ucrânia, e avançaram o processo de “otanização”. Dois países da União Europeia, Finlândia e Suécia, acabam de solicitar sua adesão à OTAN. Ao mesmo tempo, há dois países europeus não liberais, Hungria e Polônia, e ninguém diz nada a esse respeito.

O conflito gera muitas contradições. Os únicos ganhadores neste conflito são China e Estados Unidos. No caso da Europa, os Estados Unidos conseguiram retomar o controle da pequena autonomia que a Europa havia conquistado nos últimos anos. Agora o gás e o petróleo que a Europa comprava da Rússia, ela é obrigada a comprar em parte dos Estados Unidos. A autonomia militar desapareceu com a integração da Suécia e da Finlândia à OTAN. E as Forças Armadas europeias compram muito material militar dos Estados Unidos. Na semana passada, a Alemanha anunciou que compraria dos EUA 50 helicópteros. Em função do conflito, foram comprados 75 aviões dos EUA por meia dúzia de países europeus, ao mesmo tempo que se fala muito menos de um projeto de avião de defesa com tecnologia europeia.

Aos que dizem que a Europa está fortalecida com este conflito, isso não é verdade. A Europa está apenas cumprindo a profecia de David Rumsfeld em 2003: cada vez mais subordinada aos Estados Unidos militarmente, como também economicamente. Os debates nos meios de comunicação em relação a este conflito são muito fracos. Fala-se mais dos armamentos, se o tanque alemão é melhor do que o norte-americano ou o russo, do que das razões desta guerra tão grave ou de como sair dela. Não podemos perder do horizonte, que a Rússia é um Estado que é uma potência nuclear muito forte e de que o risco das populações europeias pode aumentar. Então, é preciso discutir mais seriamente como parar isso, o que não tem ocorrido.

Algumas propostas de diálogo têm sido tentadas, com a participação de alguns países africanos e de alguns países latino-americanos, mas até o momento não há nenhuma possibilidade de se consolidar uma solução. Pelo que vemos, os Estados Unidos decidiram manter a Rússia sobre pressão. A Rússia, por outra parte, não cede um milímetro do território da Ucrânia por ela invadido.

Entrevista concedida por Jean Jacques Kourliandsky à InfoCLACSO

Texto originalmente publicado em espanhol, no dia 09 de junho de 2023, no site InfoCLACSO, seção Novidades y noticias, com o título original “El Estado francés propone reducir el seguro social y los servicios públicos” Disponível em https://www.clacso.org/el-estado-frances-propone-reducir-el-seguro-social-y-los-servicios-publico/, relativo a entrevista concedida em 31 de maio de 2023 para a CLACSO.tv. Tradução de Rafael Borges e Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.