Fiquei surpreso durante uma conversa com um repórter americano nos meses iniciais de 2020 quando ele perguntou sobre o então governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB-RS). A nossa conversa girou ao redor da possibilidade de Leite se tornar uma liderança nacional no seu partido e com isso se credenciar a uma disputa nas eleições de 2022. Disse que o governador era um jovem, na época com 35 anos, muito habilidoso na arte de fazer alianças com os partidos na Assembleia Legislativa para passar os seus projetos. As suas negociações eram facilitadas porque tinha como norma não concorrer à reeleição. Começou na carreira política pela porta da frente em Pelotas, uma cidade média do interior gaúcho. Foi vereador e presidente da Câmara Municipal (2011 a 2013) e prefeito (2013 a 2017).
Na eleição a governador teve dois fatores a seu favor. O primeiro é que os gaúchos têm por norma não reeleger o chefe do Executivo estadual. O outro foi o apoio que teve no segundo turno do então candidato a presidente da República Jair Bolsonaro (PL), que também apoiava o adversário de Leite, o então governador José Ivo Sartori (MDB-RS). Assim que a administração federal começou a ser detonada pelas lambanças de Bolsonaro, Leite rompeu com o presidente. É do jogo. Mas para um jovem político sair do interior do Rio Grande do Sul e se tornar uma liderança em um partido complexo como o PSDB é preciso muito mais do que saber jogar o jogo da disputa eleitoral. Tem que saber interpretar os acontecimentos ao seu redor.
Leite era prefeito de Pelotas no dia 9 de abril de 2015, quando a professora Cláudia Hartleben, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), desapareceu – há matérias na internet. O inquérito policial apontou três suspeitos pelo sumiço de Cláudia. Houve uma mobilização popular enorme na cidade e no Estado, exigindo que as autoridades resolvessem o caso. Todo repórter sabe que, quando a polícia não resolve um caso de desaparecimento nas primeiras 72 horas, é muito difícil resolvê-lo depois. E quando resolve é por um golpe de sorte, como aconteceu com o desaparecimento, em 2018, da contadora Sandra Lovis Trentin, em Palmeira das Missões (RS). Um ano depois um agricultor encontrou, ao acaso, o corpo dela enterrado em uma cova rasa à beira da estrada. A polícia descobriu que o marido dela, Paulo Ivan Landfeld, havia contratado Ismael Bonetto, que a executou com um tiro na cabeça. Os dois estão respondendo pelo crime.
Ao se eleger governador, tendo como vice Ranolfo Vieira Júnior, um experiente delegado da Polícia Civil, que também acumulou o cargo de secretário da Segurança Pública, Leite montou um eficiente aparato policial que diminuiu sensivelmente a violência no Estado. Todos os crimes diminuíram. Menos um: a violência contra as mulheres – há uma vastidão de matérias na internet. Por quê? Existem vários casos como o da professora Cláudia, em que toda a comunidade sabe quem são os suspeitos, mas uma acusação formal não é feita contra eles porque não existe um corpo para comprovar o crime. Nesses casos é muito difícil a investigação policial conseguir provas suficientes para indiciar alguém.
Em setembro de 2018 fiz o post Procurados vivos ou mortos, onde faço uma lista de desaparecidos cujos possíveis autores foram apontados por investigações policiais, mas que estão andando livremente pelas cidades porque o corpo da vítima não foi encontrado. De todos os governadores eleitos pelos gaúchos, Leite é o único que tem conhecimento do sofrimento que causa para a família e a comunidade casos como o da professora Cláudia. Por que não moveu uma palha para ajudar a resolver o caso? Por tudo que li e conversei com pessoas, a conclusão é que ele não se envolveu porque não teve a sensibilidade política de ver que ali estava um dos motivos responsáveis pelos elevados índices de crimes contra as mulheres. E foi exatamente essa mesma falta de sensibilidade política de Leite que o levou a enfiar os pés pelas mãos na disputa pela indicação do seu partido para disputar a Presidência da República – há matéria na internet.
Seja lá qual for o destino do ex-governador gaúcho nas eleições de 2022, ele teve uma grande oportunidade de ser relevante para a comunidade no caso da professora Cláudia, e nada fez. Claro, a imprensa também tem culpa nessa história. Não lembro de ver uma matéria cobrando do governador uma solução do caso. Sabem? Muitas vezes nós jornalistas gastamos o nosso tempo em longas análises sobre as crenças políticas dos eleitos e esquecemos de observar o comprometimento deles com a sua comunidade. Qual será o destino do caso da professora Cláudia? A cada minuto que passa, ele fica mais robusto como um símbolo da impunidade dos crimes praticados contra as mulheres.
Tenho defendido nas conversas com colegas nas redações do interior do Brasil e com estudantes de jornalismo que é necessário refletirmos sobre as prioridades que elegemos nas redações. Casos como o da professora Cláudia começam como manchete e acabam como matéria de pé de página. E com o tempo desaparecem dos jornais. Mas ficam vivos nas mentes da comunidade e das famílias atingidas. Vez ou outra, fazemos uma notícia sobre o assunto. Claro que os jornais não podem colocar um setorista permanente para cuidar de casos como o da professora Cláudia. Até porque as redações hoje trabalham com um pequeno contingente de jornalistas. Mas alguma coisa precisa ser feita.
***
Carlos Wagner é jornalista e trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.