Nos últimos dias a tragédia vivida pela população yanomami chamou a atenção da cobertura midiática no Brasil e no mundo. Assistimos perplexos o resgate de mais de mil pessoas em situação de completo abandono, sofrendo com doenças como malária, pneumonia, desnutrição e contaminação por mercúrio. Tal realidade contrasta com o tratamento dispensado à população indígena pela Constituição Federal de 1988. Nosso Código Legal dedica o capítulo VIII, intitulado “Da Ordem Social” para a questão indígena, estabelecendo em seu artigo 20, XI que as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários são bens da União. Além disso, o artigo 22, XIV determina que compete privativamente a União legislar sobre as populações indígenas. Ou seja, nossa constituição deixa claro que tais povos estão sob a responsabilidade do Estado brasileiro, que deve zelar pelo bem-estar destas populações.
Em relação a exploração das terras indígenas, o artigo 49, XVI deixa claro que compete exclusivamente ao Congresso Nacional autorizar qualquer tipo de aproveitamento de recursos hídricos e a lavra de riquezas minerais. Tal determinação tem o claro objetivo de evitar que os interesses capitalistas e predatórios sejam colocados acima dos interesses e do bem-estar das populações indígenas. Apesar disso, em 2021, houve a maior expansão de garimpos nos últimos 36 anos, o que significa a devastação de 15 mil hectares em um único ano. De 2017 a 2021, as novas áreas de garimpo atingiram 59 mil hectares, número que supera todo o espaço tomado por garimpos até a década de 1980. Dentre as populações indígenas, as mais afetadas pela atividade garimpeira nos últimos anos foram: Kayapó e Munduruku, ambas no Pará e a Yanomami, em Roraima. Segundo levantamento divulgado recentemente pela Hutukara Associação Yanomani, o garimpo ilegal em Terra Indígena Yanomami cresceu 54 %, em 2022, devastando 5.053 hectares. A Associação ainda aponta que a devastação promovida por garimpos ilegais na região saltou de pouco mais de 1.000 hectares, em 2018, para mais de 5.000 hectares em 2022. Com isso, fica evidente que o Estado brasileiro não cumpriu seu papel, estabelecido pela Constituição Federal, de zelar pelas populações indígenas, o que contribuiu diretamente para a crise humanitária vivida pelos Yanomamis.
Vale lembrar que a trajetória política do ex-presidente Jair Bolsonaro foi marcada pelo total desprezo com as populações indígenas e pela defesa das atividades predatórias, como os garimpos. Como deputado federal, em 1995, Bolsonaro foi contra a demarcação de terras indígenas, inclusive das que são ocupadas pelos Yanomamis. Em 2020, segundo apurado por reportagem do Brasil de Fato, publicada em 6 de maio de 2022, Bolsonaro voltou a se posicionar contra a existência das terras indígenas yanomamis, declarando que:
A reserva Yanomami tem mais ou menos 10 mil índios. O tamanho é duas vezes o Estado do Rio de Janeiro. Justifica isso? Lá é uma das terras com o subsolo mais rico do mundo. Ninguém vai demarcar terra com subsolo pobre. Agora o que o mundo vê na Amazônia, floresta? Está de olho no que está debaixo da terra.
Podemos perceber que mesmo como presidente da república, Bolsonaro insistiu na tese de que as reservas indígenas eram uma ameaça para a soberania nacional, já que desde que era deputado federal, propagava sem nenhum embasamento na realidade, a hipótese de que um dia os povos indígenas separariam suas terras do território brasileiro com o apoio da ONU e dos Estados Unidos da América, como afirmou em diversas entrevistas. Além disso, em diversas ocasiões o ex-presidente afirmou que as reservas indígenas ameaçavam o agronegócio, além de se vangloriar do fato de seu governo não ter demarcado um só centímetro de terra indígena. O ódio de Bolsonaro contra os povos originários sempre foi escancarado, como podemos perceber pelo pronunciamento realizado, em abril de 1998, na Câmara dos Deputados: “A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”. Em outro discurso proferido na Câmara dos Deputados, em 21/01/2016, afirmou: “Vamos desmarcar a Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros”. Com tudo isso, infelizmente, já era esperado que como presidente, Bolsonaro não se comprometeria com a questão indígena, afinal o próprio ex-presidente já admitiu ter atuado como garimpeiro na Bahia, quando estava na ativa no Exército, assim como seu pai, que garimpou em Serra Pelada.
Em 2022, um Relatório de auditoria publicado pela Controladoria Geral da União apontou que eram dadas autorizações para garimpos mesmo com documentos incompletos, sem verificação, sem transparência e que as superintendências regionais da Agência Nacional de Mineração cometiam erros sistemáticos. O relatório também apontou, pelo menos, 3 casos em que gerentes e funcionários do alto escalão da agência possuíam negócios em empresas privadas de mineração, o que revela o aparelhamento do Estado em prol dos interesses de corporações capitalistas, característica marcante do governo Bolsonaro. Além disso, fica evidente o resgate da política indigenista promovida pela Ditadura Civil Militar brasileira, pelo governo do ex-presidente. Vale lembrar que, em 1967, foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai), com a proposta de assegurar a segurança nacional e promover o desenvolvimento econômico do país. Dentro de tal proposta, os nativos eram vistos como responsáveis por dificultar o crescimento econômico do país, ficando à cargo da FUNAI, durante o regime militar, ajudar a controlar os indígenas que se posicionavam de maneira contrária aos empreendimentos realizados pela Ditadura no período. A forma de controle empreendida pelos militares ficou evidente no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que apontou que, ao menos, 8.350 indígenas foram mortos pelo Estado na Ditadura durante a realização das obras de infraestrutura defendidas pelo regime. Assim como no período militar, Bolsonaro também propagou a ideia de que os indígenas representavam um empecilho ao desenvolvimento capitalista do Brasil, como fica evidente em fala realizada em agosto de 2019, segundo reportagem da Agência Brasil (16/08/2019):
Não pode continuar assim, [em] 61% do Brasil não pode fazer nada. Tem locais que, para produzir, você não vai produzir, porque não pode ir em uma linha reta para exportar ou para vender, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um quilombola, de uma terra indígena, de uma área proteção ambiental. Estão acabando com o Brasil.
A fala do ex-presidente evidencia o resgate da visão sobre os indígenas propagado no período da Ditadura Civil-Militar, atribuindo aos povos originários a responsabilidade pela dificuldade no desenvolvimento econômico do país. Vale lembrar que Bolsonaro sempre foi um entusiasta do regime de terror institucionalizado pela Ditadura no Brasil, o que certamente influenciou sua política voltada para a população indígena. Assim como no período militar, podemos perceber que esta visão deturpada sobre os povos originários produziu efeitos catastróficos para esta população. Infelizmente, a tragédia do povo Yanomami já era anunciada, como podemos perceber pela leitura do artigo “Necroterritórios: territorialização e desterritorialização dos povos indígenas como estratégias necropolíticas”, publicado em junho de 2021 pelo pesquisador Manuel Rufino David de Oliveira. O autor apontou que, segundo carta divulgada pela Associação Hutukara Yanomami, estimava-se, já em 2021, que “20 mil garimpeiros estariam infiltrados na Terra Yanomami, maior território indígena do país, dividido entre Roraima e o Amazonas, com cerca de 26.780 indígenas vivendo na região” (OLIVEIRA, 2021, p. 104). Certamente, o governo Bolsonaro tinha conhecimento destes dados, porém preferiu ignorar tal realidade em nome dos interesses capitalistas de garimpeiros e agropecuaristas interessados na exploração das terras indígenas. O autor ainda defendeu que:
A usurpação de terras tradicionais, as chacinas, os assassinatos e a proliferação de doenças contagiosas não são fenômenos apartados e sem correlação, pois fazem parte de um projeto de genocídio de povos originários que vem sendo colocado em prática desde o período colonial brasileiro (OLIVEIRA, 2021, p. 104).
Historicamente, a necropolítica de genocídio dos povos indígenas foi uma estratégia do poder político para assegurar os interesses econômicos da elite branca, em detrimento da existência da população indígena. Estima-se que antes da invasão portuguesa, havia cerca de 5 milhões de indígenas ocupando o território que hoje pertence ao Estado brasileiro. O último censo, realizado em 2010, apontou que existiam menos de 900 mil indígenas vivendo no Brasil, o que revela os impactos da necropolítica direcionada aos indígenas desde o período colonial. Embora possamos considerar tal política como um fenômeno de longa duração, nos causa perplexidade perceber que em pleno século XXI, o Brasil tenha vivido um governo de extrema direita que resgatou a visão colonial e do período da Ditadura, na qual os indígenas eram vistos como um entrave para o crescimento econômico pretendido pela elite branca. Já em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) alertou o governo sobre a fome dos Yanomamis, determinando que a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesi), deveria comprar alimentos para garantir a sobrevivência da comunidade. Porém, o governo federal simplesmente ignorou a recomendação do MPF. Convém destacar que a Secretaria citada acima foi comandada por militares sem formação e sem experiência em questões importantes, como a saúde indígena. O primeiro nomeado, por Bolsonaro, para liderar a Sesi foi o coronel do Exército Robson Santos da Silva, que foi, mais tarde, substituído pelo também coronel Reginaldo Ramos Machado, amigo pessoal do ex-presidente. Ambos realizaram um verdadeiro desmonte na estrutura de atendimento da Secretaria. Departamentos e cargos importantes do órgão foram simplesmente extintos e mecanismos de participação social, fundamentais para o controle de questões importantes para as populações indígenas, foram descontinuados.
Podemos considerar que a catástrofe humanitária sofrida pela população Yanomami é uma estratégia da necropolítica resgatada pelo governo Bolsonaro, já que a proliferação dos garimpos nas Terras Indígenas, ocorrida nos últimos anos, foi diretamente responsável pela contaminação dos recursos hídricos por mercúrio, ocasionando doenças graves para os Yanomamis. Além disso, a devastação ambiental prejudicou a agricultura e reduziu a oferta de animais disponíveis para a alimentação das populações que vivem nas Terras Indígenas, afetando todas as atividades econômicas fundamentais para a subsistência do povo Yanomami. As principais consequências trazidas pelo cenário narrado acima foram: a fome, a desnutrição e a maior vulnerabilidade às doenças trazidas pela alimentação insuficiente. Além disso, a precarização do sistema de saúde e a falta de compromisso com a prevenção de doenças contribuiu para o cenário catastrófico de genocídio amplamente denunciado pela mídia nos últimos dias. O agravo no quadro de saúde também tem relação com os garimpos ilegais, já que além das doenças trazidas pela contaminação dos recursos hídricos por mercúrio, a mobilidade dos garimpeiros pela região também pode ter contribuído para a entrada de novas cepas da malária. A falta de cloroquina, medicamento utilizado para o combate da malária também contribuiu para a tragédia Yanomami, o que também pode ser considerado fruto da irresponsabilidade do governo Bolsonaro. Isso porque o governo distribuiu o medicamento para combater a pandemia de Covid-19, embora já fosse de conhecimento da comunidade científica que a cloroquina não apresentava nenhuma eficácia contra o vírus. Com isso, os estoques do medicamento foram afetados, prejudicando o tratamento da malária, doença em que a droga apresenta eficácia comprovada por estudos científicos. Tal situação pode ser confirmada pelo relato do médico Maicon Douglas, que atende na comunidade de Surucucu, no Território Yanomami. Segundo entrevista concedida ao portal G1 (01/02/2023), Maicon afirmou que: “Começamos a ficar sem cloroquina, e o número de pacientes com malária só crescia mais e mais […]”. Portanto, a fome, a desnutrição e a proliferação de doenças entre estes indígenas fazem parte de uma política planejada pelo governo Bolsonaro e pelos militares que ocuparam cargos importantes durante o aparelhamento do Estado promovido pelo ex-presidente. Conforme apontou reportagem publicada pela The Intercept Brasil (28/01/2023),
Não é que os militares simplesmente permitiram a garimpagem em áreas indígenas. Eles atuaram em conluio com os garimpeiros. Militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva por exemplo, chegaram a ter um grupo de WhatsApp com garimpeiros da região Yanomami para poder avisá-los sobre eventuais ações desencadeadas ali (FILHO, 2023).
O conluio entre militares que ocupavam cargos no governo Bolsonaro e os garimpeiros também foi denunciado pelo procurador da República, em Roraima, Alisson Marugal, que afirmou, conforme publicado no Estadão (24/01/2023), que o governo do ex-presidente
[…] fez operações para não funcionar, com ciclos de cinco a dez dias. De 400 pontos de garimpo, por exemplo, atuaram em apenas nove. Foram três ciclos com o mesmo resultado: nenhum resultado. Paralelamente assistimos à deterioração dos índices de saúde dos indígenas e a falta de governança do Ministério da Saúde.
Tais apontamentos deixam claro que a crise humanitária dos Yanomamis tem a digital de diversas autoridades públicas e que cabe a mídia e a sociedade civil cobrarem das autoridades competentes que estas pessoas respondam pelos crimes que cometeram, e que ceivaram a vida de centenas de indígenas da região de Roraima. A tragédia só não foi ainda pior devido a rápida atuação do governo Lula, que visitou a região e deu início a ações importantes para socorrer a população Yanomami e iniciar o combate aos garimpos ilegais. Tais ações podem ser percebidas por medidas de caráter emergencial, como o resgate e o encaminhamento de milhares de indígenas para serviços de saúde e de assistência social, assim como por medidas mais estruturais, como a desmilitarização da Funai iniciada pela ministra Sônia Guajajara, que já demitiu 43 militares que atuavam contra a proteção dos povos indígenas. Porém, podemos prever que o governo Lula terá que percorrer um longo caminho para reverter todo o desmonte realizado pelo governo Bolsonaro em relação aos órgãos e às políticas públicas voltadas para a defesa da população indígena. Infelizmente, a catástrofe humanitária do povo Yanomami é mais uma triste herança deixada pela irresponsabilidade do governo da extrema direita em nosso país. Cabe à sociedade refletir sobre o significado da catastrófica experiência representada pelo governo Bolsonaro para o Brasil e para o povo brasileiro, para que possamos perceber os riscos representados pela agenda de retrocesso defendida pela extrema direita.
Nota / Referências
BANDEIRA, Karolini. Aposta do governo Bolsonaro em cloroquina contra Covid-19 teve impacto na oferta de insumo para combate à malária entre yanomamis. G1. 01 fev 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia/2023/02/aposta-em-cloroquina-contra-covid-19-contribuiu-para-escassez-de-insumo-no-combate-a-malaria-de-ianomamis.ghtml. Acesso em 01/02/2023.
FILHO, João. Bolsonaro recuperou projeto da ditadura militar contra os Yanomami: mão de obra ou extinção. The Intercept Brasil. 28 jan. 2023. Disponível em: https://theintercept.com/2023/01/28/bolsonaro-recuperou-projeto-da-ditadura-militar-contra-os-yanomami-mao-de-obra-ou-extincao/. Acesso em: 31/01/2023.
OLIVEIRA, M. R. D. Necroterritórios: territorialização e desterritorialização dos povos indígenas como estratégias necropolíticas. Margens, vol. 15, n. 24, pp. 103 – 122, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/revistamargens/article/view/10051/7565. Acesso em: 31/01/2023.
PAJOLLA, Murilo. Bolsonaro estimulou avanço de garimpeiros sobre os Yanomami; relembre casos e declarações. Brasil de Fato. 06 maio 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/06/bolsonaro-estimulou-avanco-de-garimpeiros-sobre-os-yanomami-relembre-casos-e-declaracoes. Acesso em: 31/01/2023.
SANT’ANNA, Emilio. Operações do governo Bolsonaro em terra Yanomami foram feitas para não funcionar, dizem procuradores. 24 jan 2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/operacoes-do-governo-bolsonaro-em-terra-yanomami-foram-feitas-para-nao-funcionar-dizem-procuradores/. Acesso em: 31/01/2023.
VERDÉLIO, Andreia. Bolsonaro diz que não fará demarcação de terras indígenas. 16 ago 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-diz-que-nao-fara-demarcacao-de-terras-indigenas. Acesso em: 31/01/2023.
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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo