Mais de 1,5 milhão de brasileiros se informam através dos meios digitais. Algo próximo a 11% da população usa sites, aplicativos e redes sociais para se inteirar das notícias. É o que aponta pesquisa do Target Group Index, do Ibope, publicada em abril deste ano. O estudo demonstra ainda que 37% da população das grandes cidades e áreas metropolitanas lê jornais diariamente para se manter informado.
Se o retrato é aparentemente positivo para as opções informativas factuais não se pode dizer o mesmo da leitura de livros. Ao observarmos dados da 4ª edição dos Retratos da Leitura no Brasil – o maior e mais completo levantamento sobre o perfil leitor brasileiro em que foram ouvidos mais de cinco mil entrevistados, em 317 municípios nacionais – promovida pelo Instituto Pró-Livro e aplicada pelo IBOPE Inteligência, divulgada em maio de 2016 – a próxima edição está prevista para este ano –, há pouco a comemorar. Da média anual de leitura cuja elevação foi de 4,0 para 4,96, apenas 2,43 livros foram lidos do começo ao fim. Outro dado preocupante: entre os brasileiros acima dos 70 anos, apenas 27% afirmam ler livros. Bem como na faixa de 40 a 49 anos, 50% se declaram não leitores. Desanimador, não?
Tour de force não só de uma persona
No dia 15/4 o governo Bolsonaro atingiu a marca de 500 dias. Representa um período consolidado de atuação da gestão presidencial no país. Mas ainda pouco conhecido em suas origens, minúcias, bastidores e posicionamento para o futuro.
As obras aqui apresentadas constituem o que pode ser denominado como um tour de force – ou seja, termo que aponta para uma situação que exige empenho e determinação – pelo jornalismo literário (texto sobre o tema/conceito na edição 730 deste Observatório). Perpassa algumas obras que podem auxiliar na compreensão de como fenômenos políticos ocorridos na realidade brasileira recente vão além das notícias factuais dos portais, sites e redes sociais, e incorporam-se às narrativas da literatura.
Podem ajudar, quem sabe, até na definição ou distinção entre a persona Bolsonaro e o movimento que o circunda, denominado de bolsonarismo. O percurso aqui proposto de sugestão de leituras – jamais pensado como “receita de bolo” – vai da escrita de um extenso perfil de Bolsonaro e de uma “eleição disruptiva”, em 2018, isto é, aquela “que desorganizou e alterou de forma ríspida os padrões, os atores, as referências de competição partidárias vigentes”, de acordo com o jornalista Maurício Moura, com passagem pelo livro-reportagem do jornalista Cesar Calejon e as cinco grandes forças que segundo ele motivaram o impulso de Bolsonaro: o antipetismo, o elitismo histórico, o dogma religioso, o sentimento de antissistema e o uso de novas ferramentas e estratégias de comunicação; ao esforço do recém-falecido jornalista e escritor Luiz Maklouf Carvalho, ao debruçar-se na volumosa documentação do processo e das mais de cinco horas de áudio da sessão secreta de arquivos do STM e das entrevistas com personagens que atuaram no caso, entre jornalistas da Veja e militares ligados ao convívio de Bolsonaro.
“Mais berro que argumento”
Farto em curiosidades, das que revelam um Bolsonaro fã de Chávez e malvisto no Exército, às que indicavam uma candidatura considerada por alguns uma piada, o jornalista Clóvis Saint-Clair, autor do livro “Bolsonaro, o homem que peitou o Exército e desafia a democracia” trata a obra como um grande perfil, e não como uma biografia, em que descreve a trajetória do atual mandatário do país desde a infância ao “fenômeno das redes sociais” que o projetou a presidência do Brasil.
A investigação se desenvolveu por seis meses, mesclou declarações à mídia, entrevistas, falas de parlamentares e um esforço para “contextualizar as falas, transcrevê-las exatamente como ocorreram e trazê-las para o lado racional da discussão”, diz o autor. O livro tem o mérito de realizar um compilado da trajetória do presidente. Para o jornalista, Bolsonaro trabalha, no discurso, no nível da emoção: “mais berro do que argumento. É uma política da imagem, não do discurso – e ele explora isso muito bem.”
Inspiração americana
“Os presidentes: a história dos que mandaram e desmandaram no Brasil, de Deodoro a Bolsonaro” é uma obra inspirada na série de podcasts desenvolvida pelo jornalista Rodrigo Vizeu ao longo de 2018, que ganhou uma adaptação impressa. Cada episódio retrata a carreira de um presidente brasileiro, em ordem cronológica. O formato inspirado em Presidential, série de podcasts do jornal americano The Washington Post e aqui baseada no podcast Presidente da Semana, programa de áudio da Folha de S.Paulo.
São 33 capítulos, em que cada texto envolve aspectos políticos específicos, com episódios pouco conhecidos do público em geral: auxiliam a entender melhor as personalidades. Vizeu destaca a relação ambígua predominante em que o cinismo em relação à classe política gera desconfianças também quanto à Presidência. A história do país é de rupturas democráticas, enfatiza o jornalista, o que recomenda muita cautela em relação aos mandatários. Lembra que, no geral, se destaca a tradição: relações entre governantes e eleitores aos moldes de pais e filhos estimula o surgimento de “salvadores da pátria”.
O “discurso trash” na disrupção
A tentativa de explicar o resultado das urnas com simplicidade por meio de duas perguntas essenciais: 1) Quais eram os principais anseios do eleitor? e 2) Como esse eleitor estava se informando?, está na base do mérito do livro do jornalista Maurício Moura e do fotojornalista Juliano Corbellini, “A eleição disruptiva – Por que Bolsonaro venceu”, obra em sete capítulos que ilustra como a força eleitoral de Bolsonaro era evidente bem antes do início da campanha. Não à toa, Maurício Moura antecipou o favoritismo do atual presidente em entrevista ao jornal El País, em fevereiro de 2018.
Dados estatísticos utilizados – por exemplo, a mobilização orgânica do bolsonarismo que, na última semana do primeiro turno, chegou a impactar 40 mil grupos por dia e, possivelmente, 28 milhões de indivíduos, ou a facada no então candidato como evento propagador no mundo digital – em pouco mais de duas horas desde a agressão, o nome de Jair Bolsonaro recebeu mais de 380 mil menções na web, considerado um evento inédito nesse universo – da IDEIA Big Data, startup de consultoria em opinião pública. Mas os autores comparam a disputa presidencial de 2018 a um roteiro de um thriller político, em que a verossimilhança se confunde com a realidade. Segundo eles, as investigações empreendidas pela força tarefa da operação Lava Jato, cujas conclusões
embasaram as acusações de Sergio Moro e que culminaram na prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, auxiliaram bastante ao espetáculo quase que diário pelos meios de comunicação e definiram o incentivo a um forte sentimento anti-política e anti-petismo. O que ao final das contas, na opinião de ambos, “foi o depositário do eleitor difuso que é esse eleitor da Lava Jato, o eleitor anti-política”.
A ascensão do bolsonarismo
O que são escolhas políticas? Quem as faz? O que se entende por política atualmente? São algumas das perguntas que norteiam o livro “A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI”. Em capítulos organizados cronologicamente, o livro-reportagem se desenvolve no sentido de permitir aos leitores perceberem que há uma nova estrutura política desde que Bolsonaro saiu-se vencedor nas urnas. Para Cesar Calejon, cinco grandes forças motivaram a votação maciça de Jair Bolsonaro: o antipetismo, o elitismo histórico, o dogma religioso, o sentimento de antissistema e o uso de novas ferramentas e estratégias de comunicação. Elementos que, de acordo com o jornalista, “seguem presentes e têm sido usados para fazer a manutenção do governo, até porque é uma proposta de gestão federal totalmente vazia. Enquanto estadista ele conhece muito pouco, por sua trajetória como deputado do baixo clero durante 30 anos”.
A obra apresenta dados e recursos que permitem contrapor afirmações tão recorrentes pelas redes sociais, como por exemplo, a de que o PT quebrou o Brasil. Calejon é categórico: “Em última análise a despeito da narrativa oficial, usada no impeachment da Dilma Rousseff, em 2016, não resiste à análise dos dados. As reservas internacionais estavam em US$ 370 bilhões, número elevado que se destacava. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e o índice de GINI (usado para medir a desigualdade dentro do país), nunca foram tão bons.” O repórter fotográfico Adriano Vizoni é coautor da obra com imagens significativas registradas durante o período como colaborador do jornal Folha de S.Paulo.
O cadete e o capitão
De acordo com o consultor em comunicação Mario Rosa, em artigo publicado em 23/8/2019 no portal Poder 360, “O cadete e o capitão” é leitura obrigatória para decifrar o “mito”. A vida do atual presidente, suas origens, a infância, trajetória militar, e o incidente de repercussão que permitiu o ingresso na vida pública, são peças-base do relato fartamente documentado, o que permite definir o que jornalismo literário pode ter de melhor.
O “cadete 531”, apelidado de “Cavalão” vai sendo desnudado no transcorrer da obra, com passagens relembradas que envolvem o artigo publicado em meados dos anos 1980 por Bolsonaro pela revista Veja em que reclamava dos baixos soldos pagos aos militares e pela reportagem que apontava um plano, elaborado por ele e outro militar, de detonar bombas em locais estratégicos do Rio de Janeiro (quartéis e a Adutora do Guandu). A maior preciosidade do livro, segundo alguns resenhistas e naquilo que o próprio autor desvenda, está na base dos julgamentos pelos quais o atual presidente enfrentou na época. Tudo devidamente documentado pelo Superior Tribunal Militar. Por exemplo: uma interpretação enviesada em que após ser condenado por unanimidade (3 a 0) pelo Exército no chamado Conselho de Justificação, foi inocentado por 9 a 4 pelo Superior Tribunal Militar, é apontada por Maklouf como distorção jurídica comprovada. O disparate entre as sentenças e os detalhes de como os episódios ocorreram estão comprovados no livro do jornalista, profissional que faleceu recentemente após luta contra um câncer.
A tormenta do governo
Divulgar histórias de bastidores do primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro, é a proposta do livro “Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos” da jornalista Thaís Oyama. Dá conta? Caberá ao leitor decidir. Mas inegável que a obra deixa claro quais são as forças em disputa entre as colunas e paredes do Palácio do Planalto e de que forma afloram convicções e os temores — reais e imaginários — que influenciam os responsáveis pelos rumos do país. Com detalhes, segredos dos generais que o cercam no Palácio, intrigas que perpassam as instâncias de poder e peculiaridades auxiliam a situar leitores ao longo dos atribulados 365 dias de gestão em 2019.
Das curiosidades observadas pela jornalista em diversas entrevistas com políticos, militares e pessoas próximas à família, destaca-se o modo imprevisível que cerca o presidente – por tabela, integrantes de sua família – na maneira como governa o país: algo que beira à paranoia em certos momentos. Thaís escreve que tanto pai quanto filho, neste caso, Carlos Bolsonaro, sofrem de mania de perseguição. De acordo com a obra, o “zero dois” (assim o presidente se refere ao filho), usa remédios para controle do humor. Em outro trecho da obra, a jornalista lembra que Bolsonaro, quando deputado e residente em apartamento no setor Sudoeste de Brasília, praticamente não bebia água da geladeira quando chegava em casa. Preferia consumir da torneira com medo de ser envenenado.
“Um novo monstro”
Um panorama da história econômica e política do Brasil desde o momento da redemocratização em uma síntese política é o que apresenta o historiador e ensaísta marxista inglês, Perry Anderson, em cinco ensaios que compõem a obra (publicados originalmente na London Review of Books) “Brasil à parte”. Os textos revelam a percepção do autor ao longo de períodos-chave do Brasil, do Plano Real ao impeachment de Dilma Rousseff. A edição inclui, ainda, uma introdução e um epílogo que analisam os primeiros meses de Bolsonaro no poder.
“Baforando fogo, Bolsonaro pôde ganhar uma eleição”. Frasista de mão cheia, Anderson destaca que a chegada ao poder do novo grupo marca uma alteração significativa na geografia do poder no Brasil. Segundo o autor, até o momento não há praticamente nenhuma infraestrutura organizativa montada como também “o círculo composto” pelo próprio Bolsonaro, seus filhos e a “entourage imediata” não enfrenta nenhuma oposição “em massa a ser esmagada”. Ao denominar o presidente brasileiro como “um novo monstro” da política mundial, associa seu desempenho aos de “líderes- ogros” como Trump, Le Pen, Salvini, Orbán e Kaczynski.
Devolver a verdade à verdade
Ao fazer referência a uma expressão usada pelo povo indígena Guarani Kayowá, ‘palavra que age’, a jornalista e escritora Eliane Brum, autora do livro “Brasil, construtor de ruínas – um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro”, diz que a palavra precisa voltar a agir no Brasil. Segundo ela, o maior desafio do Brasil de hoje é devolver a verdade à verdade: “É voltar a reencarnar a palavra e ser capaz de tecer o ‘comum’.” Eliane reconhece que inevitavelmente o bolsonarismo representa uma parcela dos brasileiros. Mas ressalta que talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer algo muito mais difícil: considerar o Fazer como imperativo ético.
Parece que se depender de parte dos leitores, principalmente aqueles de livros do segmento de política, esse fazer é possível. Segundo dados da Nielsen Bookscan, feita a pedido do jornal Estado de S.Paulo, desde quando se iniciou a série histórica, em 2013, a média mensal de vendas do segmento passou de 10 mil a 30 mil no final de 2019. A amostragem foi feita junto à pontos de venda dos principais varejistas de livros no país. De acordo com o entendimento do editor e fundador da editora Todavia, Flávio Moura, em entrevista ao Estadão em janeiro deste ano, essa retomada do setor editorial de política se deve ao momento por que passa não só o Brasil, mas os EUA e diversos países da Europa. “A democracia parecia um valor inquestionável, mas agora está sendo posta em questão, sobretudo por estes presidentes de extrema direita que têm assumido o poder”.
Referências
ANDERSON, Perry. Brasil à parte. SP: Boitempo, 2010.
ALVES, Cíntia. A eleição disruptiva: como ascendeu – e como esvaziar – o bolsonarismo. Portal do jornal GGN, 08/07/2019. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/noticia/a-eleicao-disruptiva-como-ascendeu-e-como-esvaziar- o-bolsonarismo/>
BRUM, Eliane. Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019.
CALEJON, Cesar; VIZONI, Adriano. A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI. SP: Lura Editorial, 2019. MAKLOUF CARVALHO, Luiz. O cadete e o capitão, a vida de Jair Bolsonaro no quartel. SP: Todavia, 2019.
MOURA, Maurício; CORBELLINI, Juliano. A eleição disruptiva, por que Bolsonaro venceu. RJ: Record, 2019.
NEGRISOLI, Lucas. ”Mais berro do que argumento”, afirma autor de livro sobre Bolsonaro. Portal O Estado de Minas: 08/08/2018. Disponível em: ><https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/08/08/interna_politica,978878/mais-do-berro-que-do-argumento-afirma-autor-de-livro-sobre-bolsonaro.shtml>
OYAMA, Thaís. Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. SP: Companhia das Letras, 2020.
SAAVEDRA, Victor. A ascensão do Bolsonarismo no Brasil no Século XXI – uma autópsia pertinente de olho nas eleições de 2020. Site da Agência Carta Maior: 22/09/2019. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Leituras/A-ascensao-do-Bolsonarismo-no-Brasil-no-Seculo-XXI-uma-autopsia-pertinente-de-olho-nas-eleicoes-de-2020/58/45304>
VIZEU, Rodrigo. Os presidentes: a história dos que mandaram e desmandaram no Brasil, de Deodoro a Bolsonaro. RJ: HarperCollins Brasil, 2019.
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Boanerges Balbino Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG), autor de livros e diretor da ABEJOR.