Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Linguagens que não se conectam

Um episódio recente é sintomático dos efeitos da polarização política  na cobertura da imprensa. No dia em que o Presidente Lula foi condenado em segunda instância no TRF 4,  a filósofa Márcia Tiburi abandonou o estúdio da Rádio Guaíba   durante programa de Juremir Machado da Silva ao se dar conta de que iria dividir os microfones com Kim Kataguiri, um dos fundadores do Movimento Brasil Livre. O acontecimento foi tema de intenso debate nas redes sociais também estimulados pelo fato de Márcia ser a autora de um livro intitulado “Como conversar com um fascista”.

O assunto  é controverso e não pretendemos, nesse espaço, analisar a atitude da filósofa, mas sim propor uma breve reflexão sobre as questões do jornalismo envolvidas no episódio. Quando e como deve-se antecipar para as fontes o contexto que vão enfrentar numa entrevista ao vivo ?  Há um limite para colocar em debate posições antagônicas numa reportagem? Qual o risco de interdição do diálogo a partir de  grandes divergências ideológicas e éticas ? Até que ponto esse tipo de estratégia editorial contribui para elevar o nível do debate no país ?

A resposta para essas perguntas passa por considerar as versões de dois dos principais envolvidos no episódio: Márcia Tiburi e o jornalista Juremir Machado da Silva. A filósofa publicou uma carta ao jornalista no site  da revista Cult, reproduzida abaixo:

“Sempre gostei muito de participar do teu programa. Conversar contigo e com qualquer pessoa que apresente argumentos consistentes. Mais do que um prazer é, para mim, um dever ligado à necessidade de resistir ao pensamento autoritário, superficial e protofascista. Ao meu ver, debates que desvelam divergências teóricas ou ideológicas podem nos ajudar a melhorar nossos olhares sobre o mundo.

Tenho a minha trajetória marcada tanto por uma produção teórica quanto por uma prática de lutar contra o empobrecimento da linguagem, a demonização de pessoas, os discursos vazios, a transformação da informação em mercadoria espetacularizada, os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria dos programas nos meios de comunicação de massa.  

Ao longo da minha vida me neguei poucas vezes a participar de debates. Sempre que o fiz, foi por uma questão de coerência. Tenho o direito de não legitimar como interlocutores pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e outros preconceitos introjetados em parcela da população.

Por essa razão, ontem tive de me retirar do teu programa. Confesso que senti medo: medo de que no Brasil, após o golpe midiático-empresarial-judicial, não exista mais espaço para debater ideias.   

Em um dia muito importante para a história brasileira, marcado por mais uma violação explícita da Constituição da República, não me é admissível participar de um programa que tenderia a se transformar em um grotesco espetáculo no qual duas linguagens que não se conectam seriam expostas em uma espécie de ringue, no qual argumentos perdem sentido diante de um já conhecido discurso pronto (fiz uma reflexão teórica sobre isso em “A Arte de escrever para idiotas”), que conta com vários divulgadores, de pós-adolescentes a conhecidos psicóticos; que investe em produzir confusão a partir de ideias vazias, chavões, estereótipos ideológicos, mistificações, apologia ao autoritarismo e outros recursos retóricos que levam ao vazio do pensamento.           

Por isso, ontem tive que me retirar. Não dependo de votos da audiência, nem sinto prazer em demonstrar a ignorância alheia, por isso não vi sentido em participar do teu programa. Demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. Fiquei perplexa, mas após refletir melhor cheguei à conclusão de que a ofensa que senti naquele momento era inevitável.

A uma, porque, ao contrário das demais pessoas, não fui avisada de quem participaria do debate. A duas, por você imaginar que eu desejaria participar de um programa em que o risco de ouvir frases vazias, manifestações preconceituosas e ofensas era enorme. Por fim, e principalmente, meu estômago não permitiria, em um dia no qual assistimos a uma profunda injustiça, ouvir qualquer pessoa que faça disso motivo de piada ou de alegria. Não sou obrigada a ouvir quem acredita que justiça é o que está em cabeças vazias e interessa aos grupos econômicos que, ao longo da história do Brasil, sempre atentaram contra a democracia.     

Tu, a quem tenho muita consideração, não me avisou do meu interlocutor. A tua produtora, que conversou comigo desde a semana passada, não me avisou. Eu tenho o direito de escolher o debate do qual quero participar. Entendo que possa ter sido um acaso, que estavas precisando de mais uma debatedor para a performance do programa. Se foi isso, a pressa é inimiga da perfeição. E, se não cheguei a pedir que me avisasse se teria outro participante, também não imaginava que o teu raro programa de rádio, crítico e analítico, com humor bem dosado, mas sempre muito sério, abrisse espaço para representantes do empobrecimento subjetivo do Brasil.

Creio que é importante chamar ao debate e ao diálogo qualquer cidadão que possa contribuir com ideias e reflexões, e para isso não se pode apostar em indivíduos que se notabilizaram por violentar a inteligência e a cultura, sem qualificação alguma, que mistificam a partir de clichês e polarizações sem nenhum fundamento. O discurso que leva ao fascismo precisa ser interrompido. Existem limites intransponíveis, sob pena de, disfarçado de democratização, os meios de comunicação contribuírem ainda mais para destruir o que resta da democracia.

Quando meu livro Como conversar com um fascista foi publicado, muitos não perceberam a ironia kirkegaardiana do título. Espero que a tua audiência tenha entendido. O detentor da personalidade autoritária, fechado para o outro e com suas certezas delirantes, chama de diálogo ao que é monólogo. Espero que, sob a tua condução, o programa volte a investir em mais diálogo, que seja capaz de reunir a esquerda e a direita comprometidas com o Estado Democrático de Direito em torno do debate de ideias.”

Os argumentos de Márcia tocam em alguns temas relevantes para o jornalismo brasileiro nesse momento – como o empobrecimento da linguagem, a demonização das pessoas, entre outros aspectos. O seu interlocutor merece o respeito  de quem tem uma trajetória no jornalismo e na academia. Juremir Machado da Silva é Doutor em Sociologia pela Universidade Paris V, tendo sido orientado por Michel Maffessoli, é autor de mais de trinta livros. Ele escreveu em suas redes sociais uma espécie de resposta à carta de Márcia com o sugestivo título de “Quem tem medo de Kim Kataguiri?”, reproduzida abaixo:

 

“Não tive o cuidado de avisar Marcia Tiburi e Roberto Requião de que encontrariam Kim Kataguiri em meu programa. Em jornalismo isso é padrão. Avisa-se por cortesia e para manter relações. Alguns, contudo, veem nisso um dispositivo ético.

Em se tratando de políticos isso é bastante discutível. O eleito deve estar sempre disponível para debater com qualquer um. Sem aviso prévio. Se Requião tivesse encontrado José Sarney no programa, reclamaria de não ter sido avisado? Pedi e peço desculpas a Márcia. Li sua carta de protesto no programa.

Parei para pensar. Por que não se pode debater com Kim Kataguiri? Por que ele é jovem demais? Por que o MBL é considerado fascista? Por que mesmo o MBL é fascista? Por que quer Estado mínimo? Por que Kataguiri teria sido treinado nos Estados Unidos? Por que acha que Lula é corrupto? Por que pensa como parte considerável da população brasileira? Por que apoiou Doria? Por que apoiou o impeachment de Dilma? Por que não bate panelas contra Temer? Por que é debochado, arrogante, agressivo? Por que intimida as pessoas (já sofri muita tentativa de intimidação da esquerda)? Por que o MBL filma as pessoas às escondidas para expô-las e isso é realmente grave? No meu programa já foram Cesare Batistti e Jair Bolsonaro.

Nesta semana, João Pedro Stedile e Guilherme Boulos. Por que Boulos pode e Kataguiri não? O cara de esquerda considera Kataguiri fraco e perigoso. O cara de direita considera Boulos fraco e perigoso. O cara de direita afirma que não se deve dar espaços para gente como Boulos. O cara de esquerda afirma que não se deve dar espaços para gente como Kataguiri. Recebi duas críticas: por não ter avisado (justa) e por ter convidado Kataguiri (inaceitável). Minha visão de pluralismo é essa mesma: Boulos e Kataguiri no mesmo programa, juntos ou separados. Certo, pelo protocolo, avisados.

Nos comentários que li transpareceu uma velha tentação atribuída à esquerda, mas comum na direita que me patrulha diariamente, de controlar a mídia, dizer quem tem legitimidade para falar. Todos aqueles que pensam como Kataguiri devem ser banidos da mídia? Por que não debater e desmontar seus argumentos? Achei que ele debateu muito bem com Requião. Não concordo com uma só ideia de Kataguiri. Discordo de 50% do que defende Requião. A meu ver, Kataguiri deu um baile em Requião na forma. Argumentou com calma, com frieza e com organização. Quem tem medo de Kim Kataguiri? Eu tenho. Dele, do MBL e de todos os aparelhos de pressão.

Tenho medo de certa esquerda e de certa direita. Entendo o medo dos outros.

Tenho medo de tudo e de todos, especialmente de quem me manda para o paredão moral por crime de lesa expectativa de fidelidade. Não sou de esquerda. Não sou de direita. Não tenho partido. Sou anarquista. Um anarquismo fora do catálogo.

Fazia tempo que não era vilão. Ainda conheço o script. Até hoje só a esquerda me fez perder emprego. Cada um com seus clichês e sua tribo. Sem diabolizar o outro. Qualquer outro. O outro tem sido sempre o demônio. Gosto de Olívio Dutra. Gosto de Michel Houellebecq. Esquerda e direita. Não sou, como diria Edgar Morin, de ninguém.

Não contem comigo como porta-voz pertenço à solidão da minha loucura.”

Juremir se desculpa por não ter avisado Márcia sobre quem dividira com ela o microfone, embora esclarecendo que  se trata de  assunto controverso. Não há consenso, porque a prática jornalística por sua natureza mediadora foge à  normatizações: antecipar a pauta ou não depende do contexto e dos interesses (públicos e privados) em jogo. No caso específico, não  havia interesse público envolvido diretamente, argumento que justifica o pedido de desculpas do jornalista.

Há um outro aspecto relacionado à  prática jornalística que permeia os argumentos de Márcia e Juremir. Quem convidar para a mesma mesa de modo a garantir a pluralidade do debate? O procedimento clássico de uma boa  reportagem  passa pelo  princípio de abrigar polos opostos sobre determinada questão. Mas no Brasil contemporâneo esta não tem se mostrado uma tarefa fácil. A perda do controle dos que disputam o “ringue” rende audiência e se propaga nas redes, mas pouco se avança no debate de ideias. Parece ter sido também contra essa lógica que  Márcia tenha se colocado na defensiva, embora o espaço simbólico do programa de Juremir tivesse outra natureza ela pode ter se sentido  acuada diante da avaliação dos riscos da conversa resvalar para um diálogo de surdos.

As perguntas que Juremir se faz  indicam algumas  encruzilhadas do jornalismo no atual contexto brasileiro. Como decidir quem é ou não qualificado para o debate que se propõe? A  cobertura da campanha eleitoral de 2018 terá obrigatoriamente que enfrentar essa e outras perguntas, sob pena de perda de credibilidade.

Haverá pluralidade de pontos de vista na grande mídia? O  jornalismo ativista será capaz de tratar de maneira equilibrada “verdades” factuais?  Como será o nível de aprofundamento e investigação de possíveis desvios éticos, corrupção e desrespeito às liberdades de gênero por parte dos candidatos? Como fazer uma cobertura plural que busque conectar diferentes formações discursivas? E como não cair na armadilha de cobertura equânime de um roteiro previsto de denúncias de corrupção durante a campanha?

O jornalismo não poderá ser morno diante respostas que a sociedade procura. Nesse sentido, o que se viu no episódio de Porto Alegre foi um prenúncio de um mundo por vir. É a qualidade das perguntas  que vai garantir as respostas que precisamos encontrar e elas começam nas propostas de pauta.

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Pedro Varoni é jornalista e editor do Observatório da Imprensa