Os muros da capital mexicana apareceram, em quase toda a cidade da capital, ao longo deste mês de agosto de 2022, marcados com o seguinte anúncio da Seguradora local, a GNP Seguros: “Viver é incrível”. Por quê? Porque, conforme explica a diretora de comunicação desta Seguradora, esta pequena frase carrega “uma filosofia de vida, nossa essência e nossos valores fundamentais”.
Acrescentemos, de forma inegavelmente maliciosa, que ter um seguro no México é também algo, sem dúvida alguma, “glamuroso”, e mais do que isso, é uma garantia de proteção pessoal e familiar altamente recomendável. Viver no México hoje em dia é algo realmente incrível. Duas razões pelo menos comprovam isso.
A primeira, e isso não é novidade alguma, diz respeito à insegurança que predomina e perdura no dia a dia dos cidadãos mexicanos. A falta de segurança e o risco de ser atingido fisicamente está por toda parte, de modo quase indescritível, de maneira insidiosa e brutal. O relatório elaborado pela imprensa em meados de agosto é eloquente a esse respeito. Mais de 400 pessoas morreram apenas em agosto, em vários confrontos nos Estados da Baja Califórnia, Chihuahua, Colima, Guanajuato, Jalisco, Michoacán e Sonora. Desse número, 260 pessoas foram mortas entre os dias de 9 e 12 de agosto. Essa é a rotina dos seguidores de Jesús Malverde, o santo do narcotráfico, por assim dizer.
Todos os anos, 33.000 a 34.000 pessoas morrem violentamente no país. E isso não é tudo. Em outros lugares podem ser vistas essas cenas, que de tão reais parecem cenas de filmes. Na rodovia que liga a metrópole regional de Puebla ao CDMX, na Cidade do México, um ônibus que transportava os “Lions of Yucatan”, um time de beisebol local, foi atacado em 18 de agosto, os pneus furados após serem alvejados, mas felizmente o motorista conseguiu escapar em uma fuga vitoriosa em alta velocidade. Isso não é tudo. A população indignada com a impunidade dos bandidos, a cumplicidade das autoridades e da polícia, tem feito justiça com as próprias mãos, tal como ocorreu em San José del Rincón, a poucos quilômetros da capital, em 14 de agosto. A casa do prefeito foi incendiada e um veículo da polícia foi destruído.
A segunda razão é a insegurança social, essa tão conhecida no dia a dia dos mexicanos. Trata-se de uma verdade tão óbvia, que basta caminhar pelas ruas da capital e se pode ver o quanto estão repletas de pessoas totalmente vulneráveis, como pessoas com deficiências, como os cegos, que cantam e pedem esmola de modo a garantir o pão de cada dia. Dezenas de crianças, às vezes muito jovens, vendem doces, flores e bonequinhos. 56% dos trabalhadores no país estão em empregos informais, informou o Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI) em junho. Chegar ao trabalho exige enorme esforço físico para quem depende dos transportes públicos, esforço que às vezes consome a energia necessária para o resto do dia. Metrôs e ônibus estão sempre tão lotados. Nos horários de pico, é preciso se acotovelar para encontrar uma vaga, mesmo sendo uma mulher e mesmo existindo plataformas e carros reservados.
Mas pode-se perguntar o que o presidente e seu governo estão fazendo para facilitar a vida de seus concidadãos? Sem dúvida muito, se olharmos para as eleições intermediárias e as urnas. Andrés Manuel López Obrador (AMLO) goza de um índice de popularidade que muitos chefes de estado, sem dúvida, invejam. Quatro anos após sua eleição, mais de 60% dos mexicanos confiam nele para resolver os problemas do país. Porcentagem um pouco alterada com a febre de insegurança que se instalou em meados de agosto. [2] Parece uma situação paradoxal, no entanto, as aparências enganam. Na “rua”, quando um caminhante aleatório é questionado, responde com bom senso: “Bem, ele nem sempre é crível, mas afinal, ele ainda é o melhor de todos os que tivemos nos últimos 20 anos”. AMLO fala muito, todas as manhãs ele está na mídia às 7 da manhã para dar notícias de suas ações. Ele fala bem. Ele vai direto ao coração das pessoas simples, cujo vocabulário ele conhece e emprega com facilidade. Ele denuncia os ladrões e corruptos que danificaram seriamente a Casa do México. Ele não apenas denuncia as ações, mas expõe os nomes dos agentes, seus antecessores, os presidentes Vicente Fox, Felipe Calderón, Enrique Peña Nieto, e suas comitivas partidárias, do PAN (Partido da Ação Nacional, à direita) e do PRI (Partido da Revolução Institucional).
Ele tem prometido uma Idade de Ouro revivendo o trabalho de grandes predecessores. Ele chamou esse casamento do futuro e do passado, a quarta transformação, o “4T”. A primeira Idade de Ouro do México, segundo AMLO, foi inaugurada pelo precursor da independência, o padre Hidalgo, Miguel Hidalgo y Costilla. A segunda pelo pai da Revolução liberal e laica, Benito Juárez. A terceira foi lançada pelo iniciador da Revolução de 1910, Francisco Madero. A quarta, portanto, caberia a ele, em continuação desse trabalho de transformação histórica, e para a qual estaria promovendo uma transformação moral do Estado e da sociedade mexicana, que se quer mais humanista, solidária com os mais pobres e nacionalista. Um catecismo do “4T”, em 20 compromissos, foi amplamente distribuído às famílias mexicanas [3].
Resta agora, e esta é de fato a etapa mais difícil, concretizar a “4T”, dar-lhe um perfil coerente com as suas referências históricas.
AMLO pegou o touro pelos chifres. No sentido mais literal do termo, abriu vários projetos. Foram iniciadas grandes obras destinadas a abrir o sul do país, a criar empregos numa região que sempre foi negligenciada: o comboio maia, em Yucatán, a modernização da linha férrea entre o Atlântico e o Pacífico, e a expansão dos terminais portuários. Os combustíveis fósseis foram aprimorados com a construção de refinarias. A capital foi equipada com um novo Aeroporto Internacional Felipe Angeles (AIFA), inaugurado em 21 de março de 2022. O aspecto social não foi esquecido, de modo a restaurar a justiça para os mais pobres, mas também lutar contra a delinquência. A melhor arma, repete AMLO, para diminuir a insegurança é mais abraços e menos balas [4]. Isso envolve a criação de empregos por meio de grandes obras, o aumento do número “de bolsas para crianças de famílias pobres e a concessão de uma pensão universal a todos os mexicanos com mais de 65 anos, com emprego formal ou informal. Uma guarda nacional foi criada para reforçar o trabalho considerado exemplar pelas Forças Armadas. E a Justiça, pressionada pela dimensão do crime cometido em Guerrero, em Ayotzinapa, o “desaparecimento” de 43 estudantes, finalmente teve de agir. Oito anos após os eventos, o procurador-geral da época foi preso e indiciado.
O “Verbo” presidencial está lutando para se tornar “Carne”. Mas, para isso, simplesmente faltam meios financeiros. Coagido pelas grandes fortunas, de cujo apoio necessitava, AMLO desde o início tem se recusado a usar a arma fiscal. Nenhum novo imposto sobre os lucros das empresas ou sobre as rendas dos mais ricos foi criado. Os tendões da guerra virão, segundo ele, do recurso à moralidade. Neste caso, da moralidade do Estado. Com isso o serviço público foi convidado a apertar o cinto. Ele mesmo deu o exemplo fechando a residência presidencial de “Los Pinos”, colocando o avião presidencial de seu antecessor na garagem, baixando seu salário em 77% e, consequentemente, o dos funcionários da categoria “A”. A evasão fiscal foi processada. Sua bandeira tem sido a de combater a fraude e a corrupção. No entanto, isso ainda não foi suficiente para fazer caixa e operar as mudanças necessárias, especialmente porque a suspensão de compromissos anteriores, assumidos por outros governos, não é operação simples ou fácil. O avião presidencial, por exemplo, tinha sido comprado a crédito. O que o torna invendável, já que o seu pagamento ainda vai durar até 2026, e mesmo não sendo utilizado, é preciso pagar por sua manutenção regular. O novo aeroporto foi construído pelas Forças Armadas, medida considerada eticamente mais segura. A obra de outro aeroporto, que estava pela metade, foi cancelada, uma vez que sua construção estava envolvida em uma série de esquemas e arranjos que a moral condena, o que para AMLO acabou se tornando uma questão de Estado a suspensão dessa construção. No entanto, no final das contas, toda uma série de empresas teve de ser compensada em função dessa decisão.
Essa batalha entre valores morais e valores financeiros levou AMLO a militarizar sua governança. Os militares estão em todos os lugares – na luta contra a insegurança, contra desastres naturais, contra a Covid-19, na construção do trem maia e do novo aeroporto da capital etc. A Guarda Nacional, inicialmente colocada sob comando civil, em breve será anexada à Secretaria de Estado da Defesa Nacional. O exército seria, segundo AMLO, a única instituição honesta e, portanto, confiável para alcançar as “4T”. É verdade que agosto também foi um mês desconcertante para o partido majoritário do presidente, o Morena. A consulta interna destinada a designar os grandes eleitores encarregados de escolher o futuro candidato presidencial [5], abriu a caixa de Pandora de formidáveis conflitos levados aos tribunais. E na Baixa Califórnia, a governadora, integrante do Morena, Marina del Pilar Ávila, foi acusada por Jaime Bonilla, senador da Baixa Califórnia, também do partido Morena, de cumplicidade com o crime organizado.
No México, Vivir, de fato é algo increible!…
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Notas
[1] Texto publicado originalmente em francês, em 02 de setembro de 2022, na seção ‘Nouveaux espaces latinos’ no site do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Mexique Août 2022 – Vivir es increible”. Disponível em: https://www.iris-france.org/169645-mexique-aout-2022-vivir-es-increible/. Tradução: Jeniffer Aparecida Pereira da Silva e Luzmara Curcino.
[2] 58,8% de acordo com o Consulta Mitofsky Institute.
[3] Texto completo em Andrès Manuel Lopez Obrador, A la mitad del camino, México, Planeta, 2021
[4] “Abrazos no balazos”
[5] As próximas eleições presidenciais mexicanas ocorrerão em 2024.
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Autor
Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, e com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso, ambos grupos de pesquisa na UFSCar.