Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Neofascismo nas redes sociais

Na última segunda-feira (21/11), o programa Encontro com Fátima Bernardes produziu uma enquete entre os telespectadores que repercutiu nas redes sociais: “Quem eles salvariam primeiro? – um policial levemente ferido ou um traficante em estado grave”. Na internet surgiu uma onda de respostas prontas, socorristas e médicos se manifestaram e se posicionaram escolhendo a polícia com a hashtag #EuEscolhoPoliciais. Além dos profissionais da saúde, muitos leigos reafirmaram previamente a escolha. O que isso significa?

Não é de interesse aqui discutir código ético ou mesmo legislação. O dilema ético dos médicos, que pode se desdobrar em questão jurídica ou não, é outra problematização. E o médico pode, sim, negar o atendimento a quem ele quiser, dado a tendência das escolhas médicas já previstas pelo código deontológico que prevê essas escolhas e por isso já é  discutido pelos profissionais da área: “O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente” (art. 7 do CEM); e é também previsto no Código Civil Brasileiro, art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Como aquela pediatra que se negou a atender a filha de uma petista no Rio Grande do Sul.  O presidente dos sindicato deu-lhe razão .

As consequências desse ato no campo médico é outra questão. O que interessa é o fenômeno da comunicação que o programa de Fátima Bernardes desencadeou. Por isso, tem-se as questões desse escrito: Qual o clima comunicacional para iniciar a polêmica? Que perfil político-cultural-social deriva do discurso neofascista nas redes sociais?

O clima da falsa polêmica

No cotidiano, deve-se perguntar: quem é o “bandido”? Claro que o termo bandido é um eufemismo de criminoso, um termo jurídico. Nos processos modernos, imputar crime a alguém exige processos por sujeitos diferentes: um prende, um acusa e outro julga. Isso é o processual penal. Então, dizer que alguém é “bandido” não está apenas na esfera da ética, mas na esfera jurídica. Daí, não é possível ser professor, policial, promotor e juiz em uma sociedade moderna. Mas estamos no Brasil, onde a modernidade é um conceito mal compreendido até nas universidades, e que parece ter passado da “barbárie à decadência sem ter conhecido a civilização”, como disse alguém. Aqui o clientelismo das instituições beira a Idade Média europeia e a teocracia, das piores.

A polêmica da TV Globo, é claro, fortalece o clima de fechamento social. Alguns falam em nova direita ou guinada à direita da sociedade após uma falsa refrigeração a partir de 1988 com a abertura democrática, a farsa da saída dos militares do poder e retomada da plutocracia conservadora e retrógrada. A polêmica é típica da classe média e sua ideia de sociedade. Um distopia moral das relações sociais a serviço da elite rentista.

Recentemente, uma pesquisa apontou que a maior parte da população pesquisada concorda com o adágio “Bandido bom é bandido morto”. O clima de classificação do “bandido” passa pelo ladrão de galinha, pelo estuprador e vai ao político corrupto. Mas também passa pelo estereótipo, pelo racismo, pelo preconceito e neofascismo que orienta as mentes mais diversas nas redes sociais. Esse neofascismo classifica o que é “bandido”. Em um país cuja morte de jovens negros nas periferias por agentes do Estado é algo sistematicamente planejado, policiais e grupos de extermínio matam e tomam proporções alarmantes e barbarizam a vida cotidiana,segundo pesquisa do Mapa da Violência.

Esse clima é capitaneado pelos meios de comunicação e seus programas sensacionalistas, que moldam o termo “bandido” na estética classe média com sua “moralidade bate panela”. Como uma palavra maldita a ser usado para materialização e banalização do mal. Tudo que é diferente da estética “classe média” e sua conduta moral é “bandido”. É nos meios de comunicação que a dicotomia rasa da falsa oposição de “cidadão de bem” x “bandido”. Torna-se discurso e por fim política. Uma retroalimentação da violência em linchamentos públicos ou mesmo barbárie em uma sociedade estruturalmente injusta, racista e problemática. Segundo essa “moralidade bate panela”, o criminoso é o inimigo do Estado, mas o crime é segundo a classificação das redes sociais (polícia, promotor e juiz).

O clima neofascista nas redes

O clima neofascista, que legitima a violência do Estado, alimenta a violência dos criminosos, pois sugere ações de combate ao crime de forma ostensiva, elege falsas prioridades e aumenta e beligerância em prol da indústria de armas que lucra na guerra civil brasileira não declarada.
Nas redes sociais, as pessoas se apresentam extremamente condicionadas por um ódio ao “bandido”. Por exemplo, professores se expõem posicionando-se radicalmente, pedindo a morte do “bandido”, caso eles fossem o médico. O discurso fascista se repete em uma farsa cruel que beira o racismo e o nazismo. Se fosse no passado, o “bandido” seriam os judeus ou comunista, e hoje é o negro, o pobre como seres inferiores, por isso mesmo um “criminoso” por natureza como prescrição das teorias mais sórdidas.

Por sua vez, o clima neofascista faz surgir figuras de extrema-direita que, tomadas por um discurso de ódio, alimentam o imaginário do dito “cidadão de bem”, sujeitos tomados de complexos atávicos, que repetem na time line: “O bandido bom é bandido morto”, negando qualquer processo civilizatório, criando seus bodes expiatórios, tentando se integrar com o ódio, negando a retomada da busca pelo real motivo do crime, o real motivo da macro violência no Brasil: a desigualdade social, a injustiça social e o racismo.

O discurso neofascista toma conta das redes sociais sem pudor. É sofisticação em uma estética racista e classista e envolve jovens, adolescentes e formadores de opinião, líderes religiosos e agentes públicos de alta remuneração, bem como representantes da classe média servil. Deixa de ser de ser uma questão ética-moral e passa a ser institucionalmente um problema político-cultural a medida em que se envolve em um elemento jurídico, passa a ser norma e práxis institucional. Tudo isso no processo social à la brasileira. O neofascismo eclode em uma crise institucional sem precedente beirando uma declaração explícita de guerra civil.

O combo do subdesenvolvimento brasileiro é um campo fértil para o fascismo. O obscurantismo religioso junto ao aparelhamento do Estado pela classe média e elite brasileira permitem mais do que tudo a construção da farsa e a eleição de bodes expiatórios que se transformam em imagens bem qualificadas do ódio. O “bandido” está aí, pulverizado no imaginário do “cidadão de bem”.
Ele está vindo aí para motivar os justiceiros. O que se tem nas redes sociais é uma possibilidade de perceber que no Brasil não há paz, mas um conjunto de sujeitos sociais extremamente alinhados a um imaginário de classificação “cidadão de bem” cuja oposição “bandido” se faz como resgate da sociedade miserável que se torna o Brasil ou que sempre foi.

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Moisés dos Santos Viana é jornalista e professor de Jornalismo