A imprensa é uma instituição que reflete em seu modo de operação, estrutura e características, os traços sociais e políticos da sociedade onde está inserida [1]. Três teorias regeram o modelo de atuação dos meios de comunicação e como eles evoluíram até o presente momento.
Os meios se tornaram de massa exercendo um sistema de controle de informações e conteúdo, organizando o caos informativo como apontou Walter Lippman em Opinião Pública, desenvolvendo-se para uma função de fiscalização contra o governo em defesa da sociedade, chegando a ser, ou devendo ser, o espaço na qual a pluralidade de visões e opiniões políticas refletem a sociedade, o que Siebert e Peterson, em Tres teorias sobre la Prensa (1967), chamam de teoria da responsabilidade social.
Se por um lado, a sociedade influencia o modus operandi dos meios, com a evolução das três teorias mencionadas acima, controle, vigilância e responsabilidade, a imprensa, de forma institucional, chegou aos modelos de sistemas transnacionais que, com uma concentração infocomunicacional cada vez mais ampla, transformou a instituição em um sistema de poder. Antes de adentrar essa temática, porém, com a teoria da responsabilidade social, os teóricos previam que o triunfo da verdade seria alcançado com a liberdade de imprensa assegurada e os meios revestidos do papel de “cães de guarda da sociedade” contra os abusos do poder político.
Sem embargo, com a evolução dos sistemas midiáticos cada vez mais concentrados e com uma propriedade cruzada mais ramificada, os meios passaram a ter duas características que devemos ressaltar: exercer o poder em paralelo com a estrutura política constituída e atropelar este poder quando os interesses não se cruzam como numa paralela perpendicular, é dizer, um ponto de encontro onde as duas paralelas se cruzam (voltaremos a isso).
Antes de evoluir o sistema, é importante dizer que ao não cumprir o critério da verdade e o compromisso de informações verazes, os meios de comunicação deixam de exercer suas funções sociais e entram em uma disfunção ao não cumprir os preceitos libertários das teorias que garantiram o seu espaço de pluralidade e liberdade positiva em cartas magnas e leis anticensura, como a utilização de um direito coletivo que é a liberdade de imprensa, aglutinando a liberdade individual da expressão e o direito à comunicação e informação verdadeira.
Ao mesmo tempo que, como instituição democrática, a imprensa deve cumprir com uma série de responsabilidades para desenvolver de forma eficaz sua função social, nos dias atuais vemos esse sistema em crise por uma série de motivações, destacando o modelo do sistema midiático atual, uma concentração transnacional baseada no oligopólio e na propriedade cruzada acima de limites razoáveis, o que gera uma crise de identidade no jornalismo profissional, com a ampliação do uso massivo das redes sociais e nas mudanças de hábito comunicacional, causando uma precarização da profissão, inclusive com uma reformulação de algumas funções e um acúmulo de tarefas dentro dessa nova mediasfera.
Dentro de um sistema em crise financeira, com profundas mudanças no modelo profissional, os jornalistas estão presos a um sistema midiático caracterizado por uma forte concentração empresarial que, combinada a outros fatores, tornam a profissão e seu exercício mais precários justamente em um momento crucial para as democracias, na qual na maioria dos países, a mídia torna-se o palco central das disputas pelo poder político e torna-se uma ferramenta essencial para alcançar objetivos eleitorais.
Três sistemas midiáticos
E, assim, desembarcamos em Sistemas Midiáticos Comparados, de Hallin e Mancini (2008) [2] para entender a funcionalidade do sistema midiático brasileiro. Enquanto Siebert e Peterson [1] defendem a tese de que a mídia sempre reflete a estrutura social e o sistema de controle da sociedade que está inserida, Hallin e Mancini defendem que, em muitos casos, numa visão mais flexível, a mídia também impacta nas instituições e em suas estruturas sociais, e não apenas ao contrário, o que estamos mais propensos a acreditar.
Esta afirmação leva em conta diferenças históricas e estruturais, e analisa o quanto os grupos de mídia são influenciados ou influenciam a história, as estruturas, os regulamentos e as leis de cada sistema onde atua.
Neste sentido, os autores definem o sistema midiático atual em três – Norte da Europa ou Democrático Corporativo, do Atlântico Norte ou Liberal e o Modelo Mediterrâneo ou Pluralista Polarizado. Iremos nos ater a este último a partir de agora. Vale ressaltar que o Brasil não entra na análise dos autores, e toda concepção teórica acerca da proximidade/espelhamento entre os sistemas é de nossa responsabilidade e está aprofundada em tese de doutoramento apresentado à Universidad Complutense de Madrid em 2018.
O que mais nos interessa dentro do Modelo Mediterrâneo é o aspecto do “Paralelismo Político”. Em suma, o Modelo Pluralista Polarizado apresenta semelhanças acentuadas com o sistema midiático brasileiro e pode ser, sim, em nível de comparação utilizado como parâmetro.
Veja-se que, ao estabelecer o conceito de “Paralelismo político”, que trata da relação de proximidade que há entre meios de comunicação e os sistemas políticos e o grau de autonomia entre ambos, os autores caracterizam este modelo como o “de uma indústria de imprensa orientada às elites, com tiragens curtas e com importância nos meios eletrônicos”, onde é habitual a “instrumentalização” dos meios de comunicação por parte do governo.
O paralelismo político no Brasil encontra muito aderência e é fácil de identificar quando analisamos o noticiário dos grandes meios de alcance nacional. As paralelas de interesses convergentes caminham na mesma direção e descrevem, sim, o nosso sistema midiático, mas não somente. Por isso, ao analisar profundamente a conexão paralela entre meios e políticos, desenvolvemos um conceito que exemplifica a maior característica do nosso sistema informativo: a Confluência Político-midiática Efetiva [3].
Ou seja, a propriedade de meios de comunicação em mãos de políticos profissionais, principalmente em nível estadual, com forte ascendência no Nordeste brasileiro. Para se ter em mente, das doze concessões de televisão nos estados da Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte, oito pertencem a políticos diretamente.
Com isso, chegamos à evolução do paralelismo político no sistema midiático brasileiro: a confluência: os meios de comunicação já não caminham em direção aos interesses políticos, já não sãos duas paralelas. Agora, como um rio, eles se unem em um ponto, a propriedade, e se transformam em uma única paralela convergente entre comunicação e política, interligada pela propriedade direta por um político de um grupo de empresas informativas, com atenção à televisão e ao rádio, meios que exigem concessões públicas de radiodifusão.
Se entendermos que o paralelismo político é algo macro, do sistema midiático nacional e do campo político nas democracias mais frágeis, definimos a “confluência” como a propriedade pessoal do profissional da política, que configura esse meio a seu serviço, da sua família e de seus correligionários.
Exemplo não nos faltam: Magalhães, na Bahia; Jereissati/Queiroz, no Ceará; Maia e Alves, no Rio Grande do Norte, Calheiros/Collor, em Alagoas, Sarney/Lobão, no Maranhão, Lobo, no Piauí, somente para mencionar os maiores grupos políticos-midiáticos do Nordeste.
Essa estrutura política e midiática paralela, somada à confluência político-midiática, não é apenas prejudicial à sociedade e ao pluralismo informativo e à diversidade de conteúdos, linguagens, formatos e diferentes aspectos culturais e ideológicos com os quais as empresas jornalísticas devem contribuir. Esse ecossistema tem impacto direto no eixo do jornalismo e condiciona o futuro da profissão, aumentando sua crise. E mais: influencia campanhas eleitorais e adentra na política seja a favor quando aliados, seja contra quando oposição.
Ainda: este sistema midiático paralelo e confluente, favorece a personalização da política. E este sistema já não se contenta em seguir uma linha de interesses com a paralela política. Quando necessário para seus interesses e objetivos, a paralela confluente quebra a roda do sistema e tem a tendência a atropelar os demais poderes e impor a agenda da mídia sobre a política em questões de interesses sociais/eleitorais.
A política midiática e sua personalização
Para Manuel Castells, a mídia não é o quarto poder e tampouco exerce o poder. Os meios são, na verdade, muito mais importantes do que isso, porque são o espaço onde o poder é criado. A mídia/imprensa como instituição da democracia constitui o espaço no qual são decididas as relações de poder entre atores políticos e sociais.
Por mais que haja uma amplificação das mensagens por meio dos canais digitais e suas redes, estamos de acordo com Castells quando ele afirma que é pelos meios de comunicação que praticamente todos os atores e suas respectivas mensagens devem passar. E, principalmente em períodos eleitorais, como os que estamos vivenciando neste momento no Brasil, se um político não tem presença midiática efetiva, não existe para o público, pois, “a política é fundamentalmente uma política de mídia” [4].
Por isso, vemos cada vez mais que as disputas eleitorais se expandem e se desenvolvem fundamentalmente na mídia, não apenas como mais um campo na luta pelo voto do eleitorado, mas como o espaço fundamental para qualquer vitória eleitoral. Para isso, vemos a disputa em todos os campos de redes e meios pelo controle da narrativa e das versões.
E aqui reside um ponto fundamental do papel dos meios informativos: validar as mensagens verdadeiras e proteger os cidadãos das mentiras, especialmente tendo em conta que ainda a maior parte da política eleitoral continua a ser realizada pelos meios de comunicação de massa.
Esse sistema amplia a personalização da política, enfraquece a democracia e “enlata” o noticiário em preferências ideológicas que não retratam os problemas reais do cidadão, mas cria pautas que geram audiência em momentos de pico do interesse público na política eleitoral.
Neste sentido, identificamos uma mudança no Brasil e na política midiática das empresas informativas, sejam elas de propriedade de políticos profissionais, também conhecidos como coronéis eletrônicos, seja de grupos com características empresariais e econômicas.
Se antes os meios de comunicação de propriedade dos políticos eram usados essencialmente para dar voz aos seus donos e aliados e silenciar e difamar opositores, nos últimos anos, sob uma falsa imparcialidade, a estratégia não se baseia tanto em destacar as qualidades do candidato favorito do grupo, que está sempre em conexão com o dono do meio, mas, sim, em silenciar e afastar a oposição do espaço público da audiência. No entanto, fica claro que a difamação e a acentuação dos defeitos dos rivais é outro dos recursos mais utilizados, com importância marcante das fake news, que eleva a personalização da política.
Esta característica, da personalização da política e da projeção de um líder acima do partido, fragiliza o sistema eleitoral e político e, portanto, a própria democracia, uma vez que essa popularidade em casos de sucesso eleitoral gera uma grande dependência das decisões impostas pela liderança do político “dono” do poder. E acarreta que o debate por meio das empresas informativas fica cada vez mais enviesado na forma de retratação como os grupos midiáticos abordam os candidatos em entrevistas e debates.
Dentro dessa conceitualização da personalidade diante do grupo, a personificação da política gera o escândalo como estratégia elementar, tática para conquistar o poder e prejudicar a imagem de rivais e adversários. E é na mídia e suas redes e canais que a política do escândalo se expande, assim como as fake news. Ou não foi na bancada do Jornal Nacional que o presidente contou a maior mentira da campanha eleitoral de 2018, se referindo, sem ser corregido imediatamente, sobre um famigerado “kit gay”?
Portanto, o sucesso da política midiática é se manter antes, durante e depois da campanha político-eleitoral em evidência. E, nesse sentindo, podemos constatar que o sistema midiático brasileiro contribuiu para a permanência de políticos que usam fake news a todo momento para continuarem em pauta.
Por mais que o uso das redes sociais tenha ampliado ou contrastado informações e opiniões, e que o uso de disparos em escala industrial condicione o voto de uma parte dos cidadãos, ainda é necessário que os meios de comunicação, especialmente os denominados grandes, validem essa interação de forma macro, o que aumenta a responsabilidade social das empresas informativas e da propagação de notícias, em um país como o Brasil, em que, com episódios marcantes, os meios subjugaram os poderes constituídos.
Um parêntese importante antes de finalizar: o formato vencido dos debates televisivos. A mentira e o escândalo tomam conta do debate, pautam a sociedade. E uma vez visto, difundido, entregue pela máquina de fake news do grupo político especializado na mentira industrializada do qual o atual presidente da República faz parte, o estrago à democracia está feito e é irreversível.
E esse ponto é outro fundamental. Os meios de comunicação não devem nem podem ouvir versões que são sabidamente mentirosas. Isso não faz parte do preceito das versões entre os envolvidos. Não tem a ver com a teórica objetividade/neutralidade, nem tampouco com a imparcialidade subjetiva, que se encaixa melhor no campo dos meios informativos. É absurda como a petição de alguns colunistas em pedir a versão do assassino condenado de Daniela Perez, na minissérie da HBO Max, Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez. Neste caso, a versão dele foi rechaçada em tribunal e ele condenado pelo crime.
O sistema midiático corrompe o processo eleitoral ao ouvir mentiras, difundi-las e somente após isso corrigi-las em um fact-checking (verificação dos fatos). Uma palavra dita, uma pedra atirada e uma mentira contada não retornam nunca mais a ocupar o mesmo espaço e ter o mesmo impacto. E já sabemos em que uma mentira muitas vezes repetida se transforma.
Esta corrupção do sistema e sua funcionalidade não se restringe somente aos meses de eleição, mas, principalmente, aos quatro anos de mandato de um presidente claramente mentiroso, que usou um esquema profissional de fake news para se eleger e durante os três anos de sua maléfica administração, para manter um coeficiente de votantes que permitam manter a chance real de uma reeleição que seria um grave golpe às instituições democráticas.
O presidente mente de forma compulsiva, cometendo não somente irresponsabilidades, mas, também, crimes que a Justiça observa com parcimônia, além de impor cem anos de sigilo em diversos pontos de sua administração que são de interesse público.
Por fim, cabe aos meios de comunicação, com toda sua estrutura conglomerada, baseada na propriedade política, exercer o papel de responsabilidade social assignada como a protetora da sociedade diante dos abusos do poder político.
Os meios não podem ouvir mentiras e corrigi-las. Eles devem desligar seus microfones e holofotes a todos aqueles e aquelas que manipulem a realidade. Para isso, uma discussão sobre o papel dos meios e seus deveres têm que ocorrer por meio de regulamentações e regulações. Porém, até lá, bastaria seguir o exemplo tão celebrado e aplaudido por aqui, quando as grandes redes de televisão dos Estados Unidos pararam de transmitir a coletiva de Donald Trump que se encaminhava única e somente para uma série de notícias falsas.
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Notas de Referências
[1] Siebert, F.S., e Peterson, T. (1967). Tres teorías sobre la prensa: en el mundo capitalista. Buenos Aires, Argentina: Ediciones de la Flor.
[2] Hallin, Daniel; Mancini, Paolo (2008). Sistemas mediáticos comparados. Barcelona: Hacer editorial.
[3] Rebouças, Bruno H.B (2019): La confluencia político-mediática en Brasil: la concentración política en los medios y su efecto en el trabajo periodístico. Estudios sobre el Mensaje Periodístico 25(3), 1571-1588. Disponível aqui
[4] Castells, Manuel (2009). Comunicación y Poder. Madrid: Alianza Editorial.
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Bruno H. B. Rebouças é jornalista e doutor em Jornalismo pela Universidad Complutense de Madrid, com tese intitulada: Los dueños de las empresas de comunicación y la utilización política de los medios en Brasil: el caso de los estados Bahía, Ceará y Río Grande del Norte, que analisa o uso políticos dos meios, a propriedade política e a ramificação política e comunicacional e a influência desta sobre o trabalho jornalístico.