O aniversário de cinco anos da segunda edição do Guia alimentar para a população brasileira e o lançamento do Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos, ambos editados pelo Ministério da Saúde, levaram diversos veículos de comunicação nacionais a produzir reportagens sobre os problemas do consumo excessivo de alimentos ultraprocessados na dieta do país. Trata-se de um aspecto importante na abordagem dos sistemas alimentares no Brasil, assunto nem sempre tratado de forma crítica e informativa pelo jornalismo. Segundo Maria Laura Louzada, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo, uma das entidades responsáveis pela elaboração dos guias), a imprensa ainda pode melhorar muito ao discutir a questão. Nesta entrevista, ela revela como vê a abordagem da mídia ao tema.
Você está acostumada a dar entrevistas não apenas sobre o Guia alimentar para a população brasileira, mas sobre a presença de alimentos ultraprocessados na dieta do país. Acredita que os jornalistas estão bem informados sobre o tema? Temos preparo para falar sobre os sistemas alimentares no Brasil?
Acho que isso tem mudado. Hoje você vê um aumento nas reportagens que falam sobre o consumo de ultraprocessados. É inegável que o Guia provocou uma mudança na cobertura sobre alimentação. Mas o que ainda existe muito na mídia, e que é bem complicado, é essa visão da solução do problema como algo absolutamente individual, como se as pessoas pudessem resolver todos os problemas da má alimentação com suas escolhas – como se não tivesse nenhuma determinação social, publicidade, influência da indústria, como se a gente fosse absolutamente livre para, de um dia pro outro, parar de comer ultraprocessados e seguir a vida.
Isso também acontece porque, muito provavelmente, vários veículos que fazem essas notícias são patrocinados por grandes empresas, que recebem anúncios dessas empresas. E tem uma pequena quantidade de jornalismo mais alternativo, digamos assim, tipo O joio e o trigo e o Nexo, que faz uma abordagem completamente diferente, tem uma visão maior do sistema alimentar e não simplesmente do ultraprocessado como uma escolha individual.
A abordagem deles é mais aprofundada?
Sim, com certeza.
Muitas reportagens falam sobre nutrientes, vantagens ou desvantagens dos alimentos, dietas da moda. Um exemplo recente é tratar o glúten e a lactose como vilões. Esse tipo de abordagem traz algum benefício?
Não. Confunde muito as pessoas. Os próprios alimentos ultraprocessados usam isso também: fazem propaganda por conter fibras, não ter colesterol, serem pobres em gordura. Então essa abordagem de comunicação é absolutamente inefetiva, zero. Em relação ao glúten e à lactose, é a mesma lógica reducionista – e, por outro lado, uma medicalização excessiva da alimentação. Claro que existem pessoas com intolerância ao glúten e à lactose, mas a mídia contribuiu para dar um tom desproporcional aos dados epidemiológicos, exacerbou esse problema. Isso também é ruim.
Mas as matérias da “grande imprensa” tratam corretamente o problema derivado do consumo de alimentos ultraprocessados?
Não é errôneo, mas é superficial. E muitas vezes entram na mesma lógica medicalizante e reducionista, sem entrar nos malefícios sociais, culturais e ambientais dos ultraprocessados. Não acho que as informações estejam erradas, mas muitas vezes continuam excessivamente culpabilizantes: a sua escolha, aquilo que você come está errado. Como se, com as informações dadas pelo jornalista, a partir de hoje você já pudesse mudar, como se fosse simplesmente fácil assim.
Em sua opinião, qual é, então, a pauta que falta? O que precisa ser dito, o que seria uma abordagem bacana?
Acho que é muito legal abordar as determinações macroeconômicas desse cenário. Por que estamos aumentando nosso consumo de ultraprocessados? Não é porque simplesmente, de um dia pro outro, a gente começou a fazer escolhas erradas. Existe uma mudança do sistema alimentar impulsionada pelo liberalismo, por interesses econômicos de agentes superpoderosos, existe uma abertura de mercado, enfraquecimento dos governos nacionais. Falta politizar o debate.
E como atingir os leitores que não sabem como poderiam agir sem culpabilizá-los?
Não acho necessariamente que a mídia tenha uma função específica de dar dicas de saúde, de promoção da saúde. Essa função pode até passar pela mídia, mas não é por ler uma reportagem dizendo que ultraprocessados fazem mal que uma pessoa vai começar a criar novas estratégias de alimentação. Isso passa pelos profissionais da saúde, da educação.
Agora, a imprensa pode ter uma super função de chamar para o problema, fazer enxergar, entender o problema, e isso pode agregar ao debate pessoas que não estão necessariamente preocupadas em mudar sua alimentação hoje. Principalmente os jovens, eles não estão nem aí para o risco de ter câncer ou diabetes daqui a tantos anos. Agora, se eles puderem pensar no poder das corporações, no impacto ambiental que isso traz, vão participar mais do debate do que com o discurso de que é preciso proteger sua própria saúde.
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Gabriela Erbetta é jornalista e tradutora.