Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A “alemanização” da União Europeia, inclusive da Grécia

No discurso que Yanis Varoufakis, ministro das Finanças grego, fez no dia 15 de julho, ele referiu-se às reformas impostas à Grécia pelo Eurogrupo (no qual o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, era uma figura dominante) como comparáveis àquilo que ocorreu em Versalhes quando os vencedores da I Guerra Mundial impuseram à Alemanha medidas tão duras que acabaram sendo a causa, mais tarde, do surgimento da II Guerra Mundial. Tais medidas eram nem mais nem menos que os pagamentos que os Aliados exigiam da Alemanha como compensação pelos prejuízos que esta criou aos vencedores durante o conflito militar. O rigor de tais medidas, impostas pelos vencedores aos vencidos, foi a imagem a que Varoufakis se referiu em seu discurso – uma referência que não passou despercebida no plano internacional.

Dessa forma, Yanis Varoufakis estava denunciando a vitimização da Grécia por parte dos Estados europeus, liderados pelo Estado alemão que, devido à sua história, deveria ter sido particularmente sensível no sentido de não reproduzir o que os vencedores impuseram a seu próprio país no início do século 20. A insensibilidade do Estado alemão e de seu governo foi avassaladora. Na década de 50 do século 20 perdoou-se ao Estado alemão mais de metade da dívida pública que ele devia aos vencedores da II Guerra Mundial (inclusive a Grécia). E embora tenha sido o principal beneficiário das políticas de reestruturação da dívida pública que existiram na Europa, o Estado alemão foi o que mais se opôs a reestruturar a dívida grega. Como disse Boris Johnson, o prefeito de Londres (do Partido Conservador), “o homem com a pistola na cabeça da Grécia é o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble… pois são os alemães que dirigem a campanha para subjugar a Grécia”. Foi precisamente um conhecido sociólogo alemão, Ulrich Beck, que previu que era “intenção da chanceler Angela Merkel alemanizar a Europa e o estava conseguindo”. No momento, o Estado alemão está conseguindo o que nem o Kaiser [imperador] nem Hitler puderam fazer: a dominação da Europa.

O valor das analogias histórias

Poderia dizer-se que as analogias históricas são intrinsecamente limitadas, pois a história nunca se repete, embora sejam notáveis as semelhanças entre os dois momentos históricos. Portanto, será argumentado que este domínio alemão sobre o resto da Europa não foi conseguido militarmente e que os Estados dominados aceitaram tal relação de dominação (que é apresentada como “liderança”) voluntariamente, desejando sua adesão à Zona do Euro (onde ocorre a dominação alemã), aprovada pelas populações desses Estados. O público grego, por exemplo, quer continuar pertencendo à Zona do Euro. Portanto, não se trata de uma situação a que se chegou pela força e/ou por medidas militares, e sim, voluntariamente.

Nem há como dizer que os argumentos que questionam tais analogias históricas têm um fundo de verdade. Afinal de contas, quem viveu durante a ocupação nazista de seus territórios (como foi o caso do povo grego) sabe que o que ocorre agora não é o mesmo que ocorreu naquela época. E mesmo que esses argumentos tenham um fundo de verdade, isso não quer dizer que tenham toda a verdade. Porque a dominação e a brutalidade com que foi dominada a Europa naquela época, e como o é agora, varia em sua forma, mas não em seu conteúdo e intenção. Em ambos os casos, houve uma dominação brutal que se expressou pela destruição de 25% do PIB da Grécia – com consequências humanas duradouras e um enorme sofrimento. E esta é a realidade que se deve denunciar, assim como se deve incentivar a mobilização para por fim a tanta crueldade e dor no interesse de uma dominação que se aceitou voluntariamente para conseguir um futuro que nunca chegou, nem chegará.

E, uma vez mais, este enorme poder e dominação alemães foi promovido a teve o apoio de outros Estados europeus e dos Estados Unidos em sua pretensão – daquela vez, a de deter a União Soviética, uma das causas do apoio à criação da União Europeia e da Zona do Euro. E essa dominação teve e tem consequências enormemente negativas para a periferia da Zona do Euro – que inclui Espanha, Grécia, Portugal e Itália.

Como se perpetua a dominação alemã?

A Zona do Euro não se pode compreender como uma soma de países, pois cada país tem classes sociais que podem ou não compartilhar dos mesmos interesses. A Alemanha, por exemplo, tem classes sociais que, mesmo que compartilhem alguns interesses econômicos, não compartilham outros. E um dos ditos interesses não coincidem é o modelo econômico de desenvolvimento dominante, cristalizado pelas reformas Schröder-Merkel. Esse modelo baseia-se na importância que têm as exportações para o desempenho econômico do país. Na realidade, é o modelo liberal por excelência, pois seu sucesso depende de pagar à sua classe trabalhadora muito abaixo do nível de sua produtividade. Essa circunstância torna muito difícil para os países periféricos (embora tenham salários mais baixos que os alemães) a competição com as exportações alemãs.

O grande êxito das exportações alemãs faz com que a balança comercial (a diferença entre exportações e importações) seja equivalente a 8% do PIB alemão, uma quantia altíssima, muito acima do que a Zona do Euro considera aceitável. A Alemanha exporta muito mais do que importa. E isso se deve, em parte, à capacidade limitada de poder aquisitivo da classe trabalhadora alemã, em consequência de seus salários limitados. Na realidade, Oskar Lafontaine, que foi ministro das Finanças no governo Schröder, havia proposto que o motor da economia fosse a demanda doméstica baseada num aumento de salários e das despesas públicas, medidas que, ao não serem aprovadas pelo chanceler Schröder, determinaram sua saída do governo e do Partido Social Democrata, criando posteriormente o partido Die Linke (As esquerdas) e sendo atualmente um dos economistas mais lúcidos da Zona do Euro.

O que fez a Alemanha ao longo de tantos anos?

Uma coisa que não foi feita foi o que queria Oskar Lafontaine: aumentar os salários, com o que também se teria estimulado a economia alemã e a europeia. O que o establishment alemão fez foi exportar os euros acumulados pelas exportações, emprestando-os aos países periféricos, sendo essa a causa do crescimento da dívida privada e pública nesses países. Para além da bolha imobiliária na Espanha estavam os empréstimos dos bancos alemães aos espanhóis e por trás da enorme dívida pública grega estavam os empréstimos dos bancos alemães aos bancos e ao Estado gregos.

E quando os bancos espanhóis e gregos não tiveram condições de devolver o dinheiro aos bancos alemães, o estado alemão emprestou dinheiro aos Estados espanhol e grego para que o emprestassem a seus bancos e estes pagassem sua dívida aos bancos alemães. Dessa forma, priorizaram os interesses de seus bancos a tudo o mais.

Para conseguir o dinheiro que era devido a seus bancos, o Estado alemão chegou a níveis de dureza e brutalidade que surpreenderam, inclusive, autoridades monetárias norte-americanas. Em suas memórias recentemente divulgadas, Timothy F. Geithner, que ocupou o cargo equivalente ao de ministro das Finanças no governo Obama, conta que, numa conversa com o ministro alemão, ficou surpreendido com a dureza que a Alemanha estava disposta a utilizar diante do governo grego (anterior ao de Syriza) caso não seguissem as normas que o Estado alemão propunha para conseguir o pagamento da sua dívida. E o que é mais preocupante é o apoio do Partido Social Democrata alemão às reformas Schröder-Merkel e às medidas propostas pela chanceler alemã como condição para um terceiro resgate – que significam a continuação de tamanho sofrimento.

Uma dessas medidas é a imposição das propostas feitas pelo Estado alemão (e aprovadas pelas instituições europeias) no sentido de criar um fundo de privatizações, administrado pelas autoridades europeias, que obrigue o Estado grego a privatizar a propriedade pública para conseguir recolher 50 bilhões de euros. Uma das primeiras privatizações foi a dos aeroportos mais lucrativos nas zonas turísticas gregas (a preços irrisórios), vendidos à empresa alemã Fraport, que os administra. Essa empresa alemã administra vários aeroportos na Alemanha, inclusive o de Frankfurt. Diga-se o que se quiser, trata-se de uma pilhagem dos recursos públicos gregos feita sob a supervisão das autoridades europeias (nas quais a influencia do Estado alemão é maior), pilhagem que é feita mediante a ameaça (que já se concretizou uma vez) de que o Banco Central Europeu não emprestará dinheiro aos bancos, nem ao Estado grego, no caso de desobediência. Aquilo a que estamos atualmente assistindo é a III Guerra Mundial, uma guerra sem que se dispare um tiro e sem soldados, realizada por indivíduos de paletó e gravata e com um sorriso nos lábios, protótipo da burocracia europeia e dos establihments financeiros, econômicos, políticos e midiáticos europeus, que estão, além de fiscalizar as privatizações, impondo cortes às pensões, 40% das quais não chegam ao limiar de pobreza naquele país. Em linguagem bélica, esta situação se definiria como “a ocupação da Grécia pelo Estado alemão”. Em linguagem midiática, não se utilizam tais termos por serem considerados provocadores, ignorando dessa forma que não é a narrativa, mas a realidade que ela esconde, que deve ser denunciada por ter convertido “o sonho europeu” no maior pesadelo, não só para os países periféricos como para o centro da Europa.

***

Vicenç Navarro é catedrático em Ciências Políticas e Políticas Públicas na Universidade Pompeo Fabra e catedrádico de Economia, na Universidade de Barcelona, ambas na região da Catalunha, Espanha.