Foi um dia bíblico, em todos os sentidos. De certa forma, apocalíptico – reverteu crenças, mitos e tradições que já duram milênios. Mexeu com dogmas, sempre intocáveis. Questionou a infalibilidade religiosa. Derrubou estereótipos. Reabilitou os bodes-expiatórios. Abriu caminho para revisões que podem mudar teologias, filosofias, ideologias e civilizações.
E, não obstante, depois de lidos os jornais, vistos e ouvidos os noticiários matinais daquela sexta-feira (7/4), o mundo cristão não foi para a rua: não se registraram tumultos, linchamentos, quebra-quebras por causa das conclusões extraídas do Evangelho de Judas, onde aquele que encarnava a traição reaparece como o preferido de Jesus de Nazaré.
Católicos, luteranos e cristãos-ortodoxos não se manifestaram e certamente não se manifestarão tão cedo. As religiões, todas as religiões, jamais se submetem às evidências científicas. Existem e subsistem na esfera do inquestionável. Mas alguma coisa moveu-se no implacável esquema que fez de Ihudá (Judas), Iscariotes (Isch-Karioth) o Vilão Absoluto e concentrou nos judeus (Iehudim) todas as vilanias da humanidade.
Aparato midiático
Apesar do rigor científico empregado para a datação, restauração, tradução e exegese do precioso documento há um lado midiático que não deve ser esquecido na sua divulgação pela National Geographic Society.
O anúncio ocorreu dias antes da Semana Santa, quando a mídia impregnada de fervor religioso relembra os últimos momentos de Jesus Cristo, sua Paixão e Ressurreição. Melhor clima não poderia haver para receber e fazer ressoar a comunicação.
Dois dias depois, no domingo (9/4), às 22 horas (horário brasileiro), o National Geographic Channel exibiu um docu-drama (documentário com partes interpretadas por atores) intitulado O Evangelho Proibido de Judas, com duas horas de duração e onde se mesclam reconstituições históricas, investigação científica e longos depoimentos do grupo de sábios envolvidos na extraordinária façanha de converter aqueles papiros esfarelados num dos documentos mais palpitantes da civilização dita ocidental.
Apesar da escolha da data e do aparato midiático (fartamente anunciado nos jornais de sábado, domingo e semanários), o documentário está à altura do seu teor e remete o missionarismo de Mel Gibson e as fantasias de Dan Brown ao plano da pura ficção.
Raízes espirituais
Como lembrou Carlos Heitor Cony (Folha de S.Paulo, segunda-feira, 10/4), são antigas as hipóteses para reabilitar Judas Iscariotes. Um estudioso brasileiro, o general Danilo Nunes, produziu Judas, Traidor ou Traído? (Record, 1968), best-seller que ultrapassou nosso idioma, credenciado por um sólido levantamento bibliográfico que remonta ao século 19.
A espetacular e espetaculosa revelação do Evangelho Segundo Judas não é uma iniciativa anti-religiosa, ao contrário: vai ao âmago das devoções cristãs ao relacionar-se com os demais evangelhos censurados pela Igreja (Tomás, Felipe etc.) encontrados nos anos 1940 em Nag Hammadi (Egito) e os Manuscritos do Mar Morto descobertos uma década depois, em Israel.
Ao revelar as raízes espirituais do cristianismo primitivo, suas relações com os essênios e certas doutrinas esotéricas, fica em segundo plano a questão do ‘Jesus Histórico’. Combinada à história a religião não é diminuída – ao contrário, valida-se.
[Texto fechado às 19h30 de 10/4]