Ando lendo um livro de Gilles Lipovetsky, Le crépuscule du devoir, e não é uma forma de dizer, mas de andar mesmo. Pois vou lendo em transportes coletivos, na lenta fila do banco, e até a caminho do trabalho (sempre olhando antes de atravessar a rua, é claro).
Já não vivemos na era da moral de caráter religioso, baseada nos mandamentos divinos. Ainda haverá quem faça o bem para corresponder à vontade de Deus, é claro. Outro dia, por exemplo, no centro da cidade de São Paulo, vi três jovens vestidos com roupas rústicas, distribuindo palavras de amor como novos são franciscos. Contudo, contamos nos dedos os santos que querem ser santos.
Também não estamos mais na era do dever cumprido em nome da humanidade, em nome da pátria, em nome da sociedade, em nome da ideologia, em nome da família. É claro, ainda encontraremos quem contesta o adultério por uma questão de honestidade (e não por ser pecado); quem não pratica certos hábitos sexuais por uma questão de higiene (e não por ser pecado); quem ajuda o próximo por ser um igual, um companheiro (e não por ser outro filho de Deus). Contudo, cada vez são e serão menos numerosos os herdeiros de uma ética iluminista.
Hoje, segundo o autor francês, vivemos a moral pós-dever. Uma ética light. Uma ética indolor. Trabalhamos, não em nome da honra, mas em nome da eficácia. Deixamos de fumar ou somos antitabagistas, não em nome de Deus ou dos bons costumes, mas em nome da saúde pessoal. Evitamos a menor sombra de martírio ou sacrifício — preferimos falar em envolvimento, sedução, auto-aperfeiçoamento.
É claro: estamos em pleno crepúsculo do dever, daquele dever que se entendia como um imperativo decorrente de leis superiores, cujo autor é um legislador onipotente, ou foram leis descobertas por métodos racionais.
Está cada vez mais claro: já chegou a noite escura dos imperativos categóricos, e começamos a viver a noite luminosa do entretenimento, do dietético, da desculpabilização. Dedicamo-nos hoje, sem moralismos, à busca do prazer pessoal. Pautamo-nos, sem medo ou escrúpulos, pelo desejo, e não mais pelo obrigatório, fonte de abnegação.
Evidentemente, jamais descartaremos a noção da moral. Somos seres éticos, mesmo que nossa ética seja individualista, narcisista, ética como good business.
Dispensaremos, porém, no momento, as leis de Moisés e Cristo, de Kant… e de Marx.
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Doutor em Educação pela USP e escritor