Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os códigos verbal e audiovisual

É inegável a prodigiosa escalada que a cultura foi capaz de erigir no campo da linguagem, matriz produtora de todo e qualquer conhecimento. Da rudimentar oralidade à mais sofisticada codificação audiovisual, acumulam-se milênios de pequenas e grandiosas conquistas. Todavia, à constatação desse longo percurso virtuoso, deve somar-se o olhar atento quanto aos efeitos das transformações decorrentes desse mesmo progresso, sob pena de tudo diluir-se no desperdício da própria riqueza.


Germinações e mutações


O tempo das germinações parece substituído pela temporalidade das mutações. Mais que travessia, há uma cultura da transversalidade, isto é, cortes oblíquos a alimentarem a sociedade do hipertexto. Sucedem-se inesgotáveis ondas de ofertas sem que, porém, saibamos o que efetivamente as move. Recordando Gilles Deleuze (1925-1995), não é a onda que interessa e sim a alavanca. A travessia em tempos de hipermodernidade se sente órfã de itinerários. Há passagens (e muitas). Todavia, faltam caminhos. A passagem é brecha concedida. Já o caminho requer de alguém o empenho para a sua construção. A passagem se segue; o caminho se traça. Blog pessoal, blog de notícias, portais, sites representam ondas e passagens nas quais uma certa escrita apressada finge registrar algo que, sabemos todos, é perecível.


A questão que pretendo aqui pontuar se traduz numa indagação: que travessias – que não sejam travessuras da onda – se apresentam viáveis em tempos atuais? A tentativa de resposta supõe, a priori, o modo de olhar que se lança para o cenário. Trata-se de decidir quanto ao que mais atrai o olhar: o impacto ante a ruína ou a excitação diante do monumento.


Não é difícil imaginar que a tendência majoritária se incline para o triunfalismo, em oposição ao segmento minoritário tocado pela corrosão. O problema é que a imponência do monumento tem a propriedade de esconder os horrores enquanto a dramaticidade das ruínas deixa expostas as dores de um tempo. O monumento induz à exaltação; a ruína convoca para a vivência subjetiva, ou seja, um dobrar-se sobre si mesmo que obriga a um pensar sobre o que foi e sobre o que pode vir a ser.


A alavanca promotora das travessias deriva sobretudo da consciência das ruínas. Esse foi o olhar de Sófocles, Dante, Camões, Shakespeare, Baudelaire, Machado, Dostoiévski, Kafka, Joyce, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e tantos outros poetas e ficcionistas que imprimiram à literatura caminhos fundantes. Uma coisa é certa: nenhum deles foi capturado pela tentação de uma estética da celebração, parceira do consumo de celebridades. O monumento é o feito; a ruína é o desfeito. É, pois, a dimensão da ‘ruína’ que impulsiona o ser ao ato reconstrutor. Walter Benjamin é uma rica fonte para a compreensão de como se confrontam e, ao mesmo tempo, se complementam relações entre memória, ruína, tradição e vanguarda.


O ponto para o qual se deseja destinar atenção diz respeito à eficiência que uma certa tradição de leitura com a qual se abriram sólidos caminhos. Por mais distintos que sejam os suportes (ou ferramentas) das atuais modalidades de expressão, o que está na raiz de todos sistemas comunicacionais é o código verbal. É neste que, fundado no princípio lógico e organizado da língua, se estrutura o pensamento. Ao enfraquecer-se a potência do código verbal, inevitavelmente se fragiliza o vigor do que o código audiovisual é capaz de propiciar. Não se pensa fora da construção lingüística. Nenhuma imagem pode ser decodificada sem que ela seja convertida em enunciados verbais.


É pura ilusão considerar que o ‘monumento’ das ofertas audiovisuais possa prescindir da aparência desinteressante com que se apresenta o ‘surrado’ e ‘maltrapilho’ código verbal. É fato que, para os inquietos ânimos pela mais nova ‘máquina’, o código verbal se assemelhe a um banal instrumento de um mundo à beira da extinção. O que esses mesmos inquietos, porém, não percebem é que criação, percepção, análise, crítica, interpretação e argumentação – bases fundantes e expansoras da inteligência – são atributos alocados na subjetividade, cuja origem se situa no amplo domínio do matricial código verbal. É fundamental que, à oferta de sistemas de comunicação, se siga política cultural preocupada com processos de subjetivação. O divórcio entre ambos leva ao estado de dispersão da energia comunicacional e cultural.


Do sistema analógico ao digital


Ainda mais o quadro das deformações tende a intensificar-se com a passagem do sistema analógico para o digital. À segmentação no primeiro modelo, corresponde a fusão no segundo. O benefício trazido pela convergência das mídias no sistema digital transporta consigo a ameaça de maior pulverização da informação, ao lado da vacuidade de conhecimento. A ameaça não reside na coisa mesma, mas no perfil dominante de seus usuários, cada vez mais portadores de deficiências de verbalização, refletidas tanto na fala quanto na escrita. O processo de degeneração tem sido percebido em escala mundial, contudo mais ainda tem seu grau acentuado em sociedades de economias emergentes, dentre as quais figura o Brasil.


Na contramão das evidências, políticas culturais estão sendo formuladas no sentido de se ‘ganhar tempo’ com o incremento de ofertas multimídias, deixando-se à deriva ou ao mais profundo descaso, projetos de qualificação para a leitura. A ilusão por ganhos imediatos parece ser superior à realidade e à concretude dos estragos a médio e a longo prazos. Encantar-se com a imponência do ‘monumento’ pode vir a representar um radical cenário de ruína. Não a ruína que comove a subjetividade, mas aquela que revela a implacável corrosão do que um dia foi construção.


Por outro lado, a presente reflexão, sob nenhuma alegação, se pretende um discurso conservador contra as novas tecnologias da comunicação. Ao contrário, elas são de extremada valia. É exatamente com o propósito de o melhor delas ser extraído que se torna inadiável a elaboração de um programa de política cultural, centrado na revitalização dos processos operadores do código verbal, a fim de sua potência poder migrar para os suportes entregues pela tecnologia, evitando, portanto, o entrechoque de qualificações díspares, ou seja, sofisticação tecnológica x primarismo cultural. O desafio reclamado pelo tempo presente é esse.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)