Nas bancas de Paris, a última edição do Le Nouvel Observateur coloca Chico Buarque de Hollanda como centro de uma reportagem que o considera um dos melhores escritores da América do Sul. Na capital francesa, terra de grandes teóricos, estudiosos e críticos da literatura, o jornal Le Monde instituiu um prêmio destinado a quem desenvolver a melhor resenha sobre o livro Budapeste. E fiquemos apenas na França, para não detalharmos também as homenagens ao Chico que estão sendo desenhadas em Nova York e na Espanha, por exemplo.
Enquanto isso, aqui no Brasil, nos últimos tempos, o que se fala do autor, com grande alarde, está girando em torno de um suposto caso amoroso engendrado pela imprensa a partir de fotografias em praia do Rio de Janeiro.
O que há de surpresa nisso? Não é assim que atua grande parte da mídia nacional? O inglês George Orwell, no fim da década de 40, quando idealizou seu 1984, talvez não imaginasse que o Brasil seria aquele país fictício com câmeras acompanhando todos os movimentos dos habitantes. O Grande Irmão, ou o Big Brother, como naturalmente se prefere aqui, é o ditador onipresente que controla todos os passos de uma sociedade reprimida e sem privacidade. É o que Orwell, na sua obra antitotalitária, quando olhava o futuro, chamava de ‘distopia’ ou ‘utopia negativa’. E recordo mais uma expressão orwelliana: aqui tem ‘polícia do pensamento’ ou, no original, ‘thought police’. O Big Brother controla tudo e todos. E haja platéia! Parece que as exceções, indiferentes ao espetáculo, não contam.
Mas é bem verdade que, construindo inteligentemente uma outra notícia sobre Chico Buarque, este Observatório da Imprensa estampou para os internautas o artigo de Lucília Maria Sousa Romão [ver remissão abaixo], que coloca seu foco na vasta obra do brasileiro, procurando aproveitar os holofotes para mostrar a riqueza do acervo buarquiano.
Em torno de Cecília
Entro na corrente positiva de Lucília Maria e trago, como contraponto à fofoca, algumas reflexões a respeito da profundidade dos textos do compositor. Abordo, como exemplo, a letra de Cecília, do último CD gravado em estúdio por Chico Buarque – As cidades.
Na capa de As cidades, os olhos verdes e outros emblemas do semblante do artista são distribuídos – via montagem por computador – em quatro rostos diferentes (um nórdico, um negro, um oriental e um árabe) que representam tipos físicos encontrados no Brasil. Faz parte do interior da apresentação, como excelente material gráfico, mais um rosto (um índio com os olhos do Chico) e imagens de cidades. Esse trabalho é de Gringo Cardia, que já havia feito a capa do disco Paratodos.
Inicialmente, Chico pensou em chamar o compact disc de ‘Sonhos sonhos são’ – uma das faixas –, mas depois a idéia evoluiu, pois queria encontrar um título que, além de remeter ao clima onírico, também enfatizasse os cantos das cidades sonhadas, de amores sonhados, de um sonhado mundo mais justo. Dessa forma, ficou eleito o nome ‘As cidades’. É bom lembrar que Chico estudou Arquitetura e, como imagens de fundo das páginas que contêm as letras, aparecem traçados de cidades.
Declaração de amor
Por sorte, obra-prima tem plural, mas, falando sério, As cidades é a obra-prima do Chico, fruto da maturidade alcançada pelo artista após 35 anos de carreira.
Pela internet, pinço uma reportagem de O Estado de S. Paulo de novembro de 1998 (ano do disco), assinada pelo jornalista Mauro Dias: ‘As cidades é um disco difícil. Nada de canções de assimilação imediata, de assobio à primeira audição’. E mais: ‘O compositor e seu arranjador, o violonista Luiz Cláudio Ramos, retrabalham, ajustam, burilam as partes de cada instrumento, embaralham as cordas dos violões, de forma que a beleza completa só será percebida depois da audição muito repetida e atenta’. Concordo com ele. É um disco musicalmente sofisticado. Quanto às letras, Chico Buarque costuma criá-las e reelaborá-las várias vezes em busca da perfeição. Elas ficaram irretocáveis, a poesia é bem mais formada e organizada, com menos palavras e uma carga crescente de sentidos.
Lá vai a letra de Cecília:
‘Quantos artistas
Entoam baladas
Para suas amadas
Com grandes orquestras
Como os invejo
Como os admiro
Eu, que te vejo
E nem quase respiro
Quantos poetas
Românticos, prosas
Exaltam suas musas
Com todas as letras
Eu te murmuro
Eu te suspiro
Eu, que soletro
Teu nome no escuro
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir’.
Uma obra de arte só está completa quando envolve também o lado do receptor, isto é, de quem a observa, admira e lê. Portanto a minha leitura de Cecília é a minha leitura de Cecília. Outras leituras podem ser iguais. E outras mais podem ser bem diferentes.
Até comento aqui a reação do Chico quando algumas pessoas leram a canção Você, você – do mesmo disco de Cecília – de forma diferente da qual ele como autor tinha imaginado: o compositor foi convencido do contrário que havia pensado inicialmente, aceitando então a leitura de quem ouvia a obra. Da mesma forma, a escritora Clarice Lispector, cujos livros foram estudados pelo eminente professor Benedito Nunes, confessou que o crítico do Pará descobrira nuances que ela própria, como autora, ainda não tinha percebido. A razão é mais ou menos a seguinte: no processo de criação, o artista passa para a obra tanto aspectos conscientes como também é movido por impulsos inconscientes de arquétipos que sobrevivem no ser humano. Assim, muita vezes, o que é inconsciente para o criador é lido com mais clareza pelo receptor.
Volto à leitura de Cecília. É, sim, uma declaração de amor, mas não apenas uma declaração de amor. É a declaração de um amor impossível, inalcançável, platônico, desconhecido pela musa. E mais: é uma declaração que nunca foi dita, mas apenas pensada pelo cantor. Eu tentarei explicar.
Cecília abrange 36 versos, divididos em 4 estrofes.
Eu-poético
A primeira e a segunda estrofes têm oito versos cada: são oitavas. A métrica é perfeita. São versos tetrassílabos, pentassílabos (as redondilhas menores) e hexassílabos (os heróicos quebrados). Todos têm rima. A primeira estrofe tem a rima ‘ABBCDEDE’ e a segunda ‘ABBCDEED’. Os versos aparentemente brancos da primeira estrofe (primeiro e quarto) na verdade rimam com os correspondentes na segunda estrofe. Tudo certinho…
Agora vejam as palavras dessas duas estrofes. Na primeira, o cantor diz que não é capaz de entoar música à altura da amada. Na segunda, não é capaz de fazer poesia (incapacidade e limitação da palavra) como grandes poetas.
E, no entanto, contradizendo a timidez do cantador, ‘Cecília’ tem os maiores recursos musicais de As cidades, é tocada em nada menos do que 34 instrumentos: 1 violão, 1 piano, 1 baixo, 1 bateria, 2 trompetes, 2 trombones, 2 trompas, 2 flautas, 2 clarones, 12 violinos, 4 violas e 4 cellos. Fantástica orquestra!
Quanto à perfeição da parte poética, além do que já se disse em termos da forma, é preciso acrescentar mais. Como a primeira estrofe é relacionada à música e a segunda à poesia, o primeiro verso da primeira estrofe termina com ‘artistas’ – referência à música – e o correspondente da segunda estrofe termina com ‘poetas’ – referência à letra. E rimam entre si em estrofes diferentes. Da mesma forma, o quarto verso da primeira estrofe termina em ‘orquestras’ – referência à música – e o correspondente da segunda estrofe termina em ‘letras’. Enfim, se eu transporto para a matemática, posso dizer que ‘artistas’ (no viés musical) está para ‘poetas’ assim como ‘orquestras’ está para ‘letras’, tanto na localização quase cartesiana das palavras nos verbos como no sentido hermenêutico. E, com essa lógica, outras palavras da primeira estrofe têm correspondentes na segunda, poeticamente e – por que não dizer? – matematicamente colocadas. É um verdadeiro tecido de símbolos, não é?
Nota-se a timidez do cantor (eu-poético na primeira pessoa) nas duas estrofes iniciais. A grandeza é omitida, mas está lá. O dito maravilhoso tenta esconder o mais maravilhoso não-dito. O não-dito é interditado pelo acanhamento, mas aparece latente e forçosamente entre as sílabas das palavras e dissimulado no meio das notas musicais usadas para exaltar a musa.
Sem respiração
Os verbos murmurar (dizer em voz baixa) e suspirar (desejar ardentemente, ambicionar, almejar) são usados como transitivos indiretos – ‘Eu te murmuro / Eu te suspiro’. Assim, também pelos vocábulos escolhidos, eu entendo que a declaração de amor foi apenas pensada ou sonhada (até pelo clima onírico do disco, assunto já comentado antes).
Após os murmúrios e os suspiros da segunda estrofe, na terceira, que é um quarteto, vejo que o cantor demonstra certo receio de ter sido percebido e aí (para não descortinar mais seus sentimentos) começa a se desculpar para ele mesmo (ele conversa com ele próprio como se dissesse a Cecília) – ‘Na tua presença / Palavras são brutas’ –, clima que prossegue até os primeiros versos da quarta e última estrofe – ‘Mas nem as sutis melodias / Merecem, Cecília, teu nome espalhar por aí’.
Coincidentemente, o rigor das rimas observado nas duas primeiras estrofes é abandonado na terceira e na quarta, o que me leva a supor que o cantor ficou desconcertado. E o desconcerto maior ocorre quando ele reconhece que o desejo é irremediável e confessa a si próprio: ‘Eu, que não digo / Mas morro de desejo’. Penso que ele apenas revela a si mesmo, porque logo em seguida vêm os divinos versos finais: ‘Te olho / Te guardo / Te sigo / Te vejo dormir’. Aí o ‘Te’ repetido dá ritmo à letra e intensifica a imagem. É uma volta à razão – abandonada antes por ligeiríssimo momento – e ao discurso de voyeur. Na minha leitura, o verso final – ‘Te vejo dormir’ – confirma que Cecília não sabe de nada, não ouviu nada e é amada a distância, de longe.
Quero ainda chamar a atenção para mais dois detalhes que observei.
Primeiro, Chico usa algumas vezes o recurso clássico de repetições seguidas de sons iguais para firmar mais as idéias: ‘tantos’ em ‘tantos poetas’, ‘Tantos cantores’ e ‘Tantas Cecílias’; ‘com’ em ‘Com grandes orquestras’, ‘Como os invejo’ e ‘Como os admiro’; ‘eu’ em ‘Eu te murmuro’, ‘Eu te suspiro’ e ‘Eu, que soletro’.
Segundo, nas duas estrofes iniciais, o cantor fica sem respiração e no escuro por sua declarada e mentirosa impotência musical e poética, respectivamente. Depois, nas estrofes seguintes, os lábios são entreabertos (voltou a respiração) e há ‘mil refletores’ (chegou a luz).
Chico Buarque e Goethe
Como a minha visão de Cecília é a do amor platônico, voyeur, inatingível, inalcançável, vou comentar alguma coisa de outra obra – um clássico – sobre o amor impossível: Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). É o primeiro romance do escritor alemão (autor de Fausto, personagem associado à lenda de que vendeu a alma ao diabo em troca de sabedoria).
Werther – nome abreviado desse primeiro romance de Goethe – é uma história de amor descrita através de cartas e notas. O jovem Werther fica apaixonado por Lotte. Porém, antes de conhecê-la, por meio das cartas enviadas ao amigo, observa-se no livro o temperamento romântico e introvertido de Werther: ‘Reina em minha alma uma serenidade maravilhosa, semelhante à das doces manhãs de primavera que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas como a minha’. E ainda: ‘Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo’.
Então Werther conhece Lotte e, mesmo sabendo que a moça tinha compromisso com outro homem, não deixou de transmitir seu entusiasmo ao amigo com o qual se correspondia habitualmente: ‘Conheci alguém que tocou o meu coração. Eu… eu não sei mais o que dizer’. E, também, há o registro da personalidade introvertida, ensimesmada, como demonstra a expressão: ‘Só isto basta: ela tomou conta de todo o meu ser’.
Werther se apaixona platonicamente por Lotte e as cartas assumem o tom: ‘Fiz-lhe um cumprimento qualquer, mas minha alma estava inteiramente presa no encanto do seu rosto’. Seu estado de felicidade pode ser entendido pelas palavras: ‘Desfruto, no mais íntimo de mim mesmo, toda a felicidade que é possível ao homem desfrutar’.
Ao lado de Lotte, o absorto personagem fica mudo: ‘Para mim, ela é sagrada. Todo desejo emudece em sua presença. Não sei o que sinto quando estou junto dela; é como se toda a minha alma revolvesse todos os meus nervos’. Não vimos que Cecília também emudece seu cantor? Não é um sentimento parecido?
O amor de Werther é de contemplação, é celestial, é primoroso, é intocável: ‘Para eu ser feliz, basta-me contemplar seus olhos negros’. E mais: ‘Já estive a ponto de apertá-la em meus braços centenas de vezes! Deus todo-poderoso, sabe o que se sente ao ver tanto encanto? e não poder tocar…’. É como olhar Cecília e arder de desejo?
O sentimento de Werther por Lotte – que se casou com Albert – continuou platonicamente, mesmo depois do casamento da sua musa, até que o protagonista, em desespero, resolve se declarar à amada. O fim é trágico nessa obra essencialmente psicológica: após fase de desânimo e desalento, Werther se mata com a esperança de encontrar Lotte em outra dimensão espiritual.
Goethe foi um grande expoente da época do Romantismo, fase da cultura européia posterior ao Iluminismo. Na verdade, o Romantismo começou na Alemanha como reação à parcialidade do culto à razão apregoado pelo Iluminismo. Sentimento, imaginação, experiência e anseio eram novas palavras de ordem. Em pleno Romantismo, os contemporâneos de Goethe identificaram-se com os motivos de Werther, o número de suicídios aumentou, o romance chegou a ser proibido por algum tempo.
Chico Buarque e Fernando Pessoa
Em vários escritos de Fernando Pessoa (1888-1935), quando o artista português expressa em sua obra as angústias do homem moderno, está presente a figura do sentimento reprimido e do amor inatingível. Desde a apresentação de Ficções do Interlúdio – o título já nos sugere a busca das frestas das letras –, o poeta fala em dominar as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos, assim como em viver ‘cada estado de alma antes pela inteligência do que pela emoção’.
Como Alberto Caeiro, Pessoa escreve: ‘Sou um guardador de rebanhos / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações’. E ainda: ‘Sou o argonauta das sensações verdadeiras’. Ou mais uma marca da timidez: ‘Não sei o que hei de fazer das minhas sensações / Não sei o que hei de fazer comigo sozinho’. E encontro mais: ‘Procuro raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas sensações verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu’. É o amor enrustido? Como o do cantador de ‘Cecília’?
Se o heterônimo é Álvaro de Campos, o poeta é introvertido quando fala da ‘angústia da forja das emoções’ e em ‘viver as coisas pelo lado das sensações’ ou ‘extravasar de emoção’. E eu pergunto a vocês se ‘Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!’ ou se ‘todos os sentidos em ebulição e todos os poros em fumo’ não são semelhantes aos versos para Cecília? E o que é ‘olho e contento-me em ver’? É o voyeur outra vez?
Por fim, do Pessoa cito ainda o Livro do Desassossego. Lá está um texto chamado ‘O amante visual’, onde o narrador diz que ama ‘com o olhar’ e está sujeito a ‘paixões visuais’. O autor se refere ainda a ‘figuras com cuja contemplação me entretenho’ e completa: ‘vejo-as, e o valor delas para mim está só em serem vistas’. E tem outro trecho: ‘Nada mais quero da vida senão assistir a ela’.
Amor irrealizável
Mutatis mutandis, a natureza do amor irrealizável está nas obras de Chico, Goethe e Pessoa. Se comparamos Cecília e Werther, a diferença está no desfecho trágico no clássico de Goethe. Mas ‘Cecília’ não tem desfecho explícito. Um amor impossível – por motivos mais variados – pode ser igual a outro na essência, na significação, na intensidade, mas eles diferem no desenvolvimento e no The End. Há quem se disponha a amar alguém celestialmente a vida toda ou por longo tempo, cedendo sempre à razão e à inteligência no que diz respeito à adoção de atitudes.
Os que pensam assim talvez entendam que é um amor próprio das almas nobres, quiçá identifiquem barreiras, e assim prosseguem no clima de ‘Te olho / Te guardo / Te sigo / Te vejo dormir’. Retêm a imagem idolatrada enquanto tocam a vida. Há também quem adote uma saída mais explosiva ou até mesmo trágica. E há o amor impossível que acaba, morre, sem nunca ter sido declarado. Seja lá como for, disso os poetas e romancistas entendem muito bem e talvez Freud explique…
******
Escritora