Essa frase me perseguiu por meses como um mantra autocrítico após assistir a uma aula sobre o texto “Artefatos têm política?”, do teórico político Langdon Winner. A professora, enfática, nos explicou que a obra aborda como tecnologias podem não ser neutras, mas dotadas de propriedades e vieses políticos. Munida da teoria marxista, ela foi além: as tecnologias podem ser vistas como extensões das relações sociais, nas quais grupos dominantes utilizam esses artefatos para manter controle e poder sobre classes. Findada a apresentação e com um ímpeto de espalhar a palavra de Winner aos quatro ventos, quis saber qual artefato tecnológico a professora se apropriara para ministrar aula tão revolucionária: Google Chrome.
Desde aquele dia, passei a dar uma espiadela nos dispositivos dos espaços que frequentava. Universidades públicas, centros acadêmicos, redações de jornais independentes, ocupações, comunidades de software livre e até salas de docentes defensores da ciência aberta: Google para todos os lados. Minha inquietação piorou: por que pessoas que defendem princípios como igualdade social, democracia participativa, direitos humanos, economia solidária, anticapitalismo e intervenção estatal utilizam tecnologias com valores que vão na contramão dessas causas?
“Ah, mas é só um aplicativo de internet” você, caro(a) leitor(a), me diria – provavelmente lendo esse texto numa tecnologia Google. Antes que me atire pedra ou me batize como espécie de Policarpo Quaresma moderninho, permita-me explicar. O Chrome, desenvolvido pela empresa estadunidense Google em 2008, é o navegador mais usado no mundo, com cerca de 66% de participação de mercado entre usuários de desktop e smartphones. A Google, que começou em 1995 como buscador, hoje oferece mais de cem serviços “gratuitos” que, em troca, capta dados dos usuários para serem vendidos a empresas de publicidade. Tudo isso é feito por meio de sistemas que rastreiam comportamentos (os tais cookies) e políticas de privacidade nebulosas.
Ademais, a Google foi acusada de monopólio abusivo por meio de contratos de exclusividade com empresas como Apple e Samsung para garantir que seu motor de busca e navegador fossem o padrão nos dispositivos destas fabricantes. Em 2021, o Departamento de Justiça (DJ) dos EUA processou a Google por práticas anticoncorrenciais ao pagar cerca de US$ 26 bilhões anualmente a tais empresas para manter sua posição dominante. Em agosto de 2024, o DJ solicitou a venda do Chrome como medida para conter as práticas monopolistas da empresa, cuja audiência está agendada para abril de 2025.
Aproveitando de sua popularidade e a ampla base de usuários, a Google também tem dado pitacos diretos no âmbito sociopolítico. Um exemplo foi sua oposição ao Projeto de Lei 2630/20, conhecido como PL das Fake News, que busca garantir liberdade e transparência na internet no Brasil. Em 1º de maio de 2023, a Google criticou o projeto em sua página do buscador e investiu mais de meio milhão de reais em anúncios contrários. A mensagem “o PL 2630 pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil” teve mais de 1 milhão de exibições no Facebook e Instagram.
Ou seja, ao acessar o famigerado navegador da Big Tech, adentramos e consentimos com seu infindo playground da vigilância, onde cada pequeno ato nosso é transformado em produto (até tossir!). Mas não se culpe se essas coisas nunca passaram pela sua cabeça – esse sempre foi o plano (bem-sucedido) da Google: tornar-se uma tecnologia ubíqua a partir da imposição de seus artefatos de navegação e busca digital nos dispositivos cotidianos. Estrutura tecnológica tão bem integrada às nossas vidas que ações como “abrir o Chrome” tornaram-se sinônimos de acesso web. Quem nunca soltou um “dá um google” automaticamente, que atire a primeira pedra.
Adestramento do jornalismo de tecnologia
Se seus instintos de justiça não foram atiçados com as práticas da empresa do Vale do Silício – o que deixaria Evgeny Morozov orgulhoso –, há outro ponto a considerarmos: o longevo aprisionamento dos veículos de informação às dinâmicas web ditadas, de novo, pela Google. O SEO (Search Engine Optimization), conjunto de técnicas que concedem notoriedade a um dado site em mecanismos de busca, tem sido explorado pela empresa norte-americana para alavancar certos conteúdos em detrimentos de outros. Afinal, quanto mais tempo usuários passam em seu buscador, mais expostos ficarão a anúncios; logo, mais dinheiro no cofrinho deles.
Essa mecânica web gera competição por visibilidade nas buscas, pois muitos jornais se veem obrigados a adaptar suas estratégias para atender aos algoritmos da Google, priorizando palavras-chave, títulos chamativos e conteúdo otimizado. Isso leva a uma ênfase maior em temas que geram mais cliques ao invés de reportagens investigativas ou de nicho que, embora importantes, podem não atrair públicos tão amplos. Além disso, a dependência das plataformas de busca para direcionar tráfego comprometem a autonomia editorial, fazendo com que jornalistas se sintam pressionados a seguir tendências em vez de focarem em questões relevantes para seus públicos.
O jornalismo de tecnologia também acaba entrando nesse ciclo vicioso: a pressão para seguir tendências mainstream concede pouco espaço para que tecnologias comunitárias e democráticas figurem nos grandes jornais. No final, seja por questões sistêmicas do jornalismo digital, interesses político-econômicos (à la Winner), a onipresença googliana reforça-se com a ausência de posicionamento tecnológico dos veículos de informação.
Resultado? Navegadores de código aberto (open source) como Librewolf (desktop) e Brave (celular) aparecem em veículos nichados de tecnologia. Buscadores que fazem uso do SEO orgânico são pouco promovidos. Sistemas operacionais livres e otimizados, como os baseados em Linux, ganham rótulo de “coisas de nerd”. Redes descentralizadas, independentes e democráticas que compõem o Fediverso, vish, melhor nem falar.
Isso tudo me leva de volta à aula sobre o artigo de Winner. Ao revisitar e problematizar os artefatos digitais que nos foram impostos goela abaixo, também temos de questionar o jornalismo de tecnologia passivo e, muitas vezes ingênuo, praticado por décadas. Ele herda e ajuda a perpetuar as dinâmicas de uma internet que prioriza o lucro em detrimento da informação. Se você, assim como eu, às vezes se sente perdido(a) ao tentar compreender as políticas por trás das tecnologias, transparência é a bússola. O jornalismo teria muito a se beneficiar com aplicações e mecanismos de busca abertos e auditáveis, pois os livraria de práticas incoerentes e tendenciosas de alcance web.
E se esse texto lhe despertou a mínima centelha de justiça, acalme-se, camarada. Além de endossar grupos e órgãos que investigam os mecanismos manipulatórios praticados pelas grandes empresas de tecnologia – como People vs. Big Tech, NIC.br, NetLab, ANPD, etc. – seu ato mais revolucionário de hoje pode se resumir a pequenas atitudes. Sugiro uma, para começar: abra seu celular > pressione e segure o logo do Chrome > desinstalar.
Artigo produzido como trabalho final para a disciplina “Oficina de Jornalismo Científico III: Produção de Matérias Jornalísticas” da especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor-UNICAMP), ministrada pelo Prof. Rafael Evangelista.
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Rogério Bordini é graduado em Educação Musical e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), especialista em Jornalismo Científico e doutor em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutor em Interação Humano-Computador pela Helmut Schmidt University. Atualmente, atua como jornalista científico no Hospital Israelita Albert Einstein.