Uma questão que tem sido muito mal compreendida por grande parte do público brasileiro é a relação entre o governo conservador de Jair Bolsonaro e o grupo Globo, maior conglomerado midiático do país. O fato de Record e SBT terem praticamente se transformado em canais oficiais do Planalto – com direito às presenças de Edir Macedo e Silvio Santos em companhia de Bolsonaro no último desfile de 7 de setembro – tem provocado em muitos indivíduos a falsa impressão de que a Globo seria oposição ao governo Bolsonaro.
Para as mentes mais delirantes, a emissora do Jardim Botânico é “comunista” e está a serviço do chamado “marxismo cultural”, pois, ao exibir casais homoafetivos na televisão, contribui para destruir a tradicional família brasileira. Problemas psíquicos à parte, para analisar a complexa relação Globo/Bolsonaro é importante compreender o caráter do atual governo federal, que pode ser dividido, basicamente, em dois núcleos.
O primeiro núcleo, ao qual poderemos chamar de “núcleo das maldades”, é responsável por aprofundar o estado de exceção que tem sido colocado em prática no Brasil desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff e também por executar a nefasta agenda econômica neoliberal, responsável pelos cortes de direitos sociais básicos e pela entrega de nossas riquezas aos grandes capitalistas. Este núcleo tem como principais pilares os ministros Sergio Moro e Paulo Guedes.
Já o segundo, que pode ser classificado como “núcleo cômico”, é representado por figuras anódinas como Damares Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo. Porém, não nos iludamos! O “núcleo cômico” não é ingênuo. Sua função é justamente lançar uma cortina de fumaça sobre a política de terra arrasada do governo federal. Assim, enquanto o “núcleo cômico” distrai o público com suas declarações nonsense, que parecem ter saído diretamente dos piores grupos de WhatsApp, o “núcleo das maldades” faz o seu trabalho. Basta percebermos qual dos grupos tem mais repercussão nas redes sociais. Evidentemente é o “núcleo cômico”.
Pois bem, é na (estrategicamente) ambígua narrativa global sobre o governo Bolsonaro e seus núcleos – isto é, “bater de um lado e assoprar de outro” – que podemos encontrar a causa de muitas interpretações equivocadas a respeito da relação Globo/Planalto. Se Record e SBT apoiam praticamente todas as sandices do “núcleo cômico”, como a campanha de abstinência sexual para jovens inspirada em igrejas evangélicas, proposta por Damares, e os ataques de Weintraub aos professores, a Rede Globo, por sua vez, apresenta uma “visão crítica” sobre essas questões.
Mas não sejamos ingênuos novamente. Parafraseando um famoso ditado popular: de boas intenções, a grande mídia está cheia. Ao contrário dos apoiadores de Bolsonaro – liberais na economia, conservadores nos costumes -, a Globo é liberal tanto na economia quanto nos costumes, pois, além de possuir um grande número de funcionários LGBTs, a empresa da família Marinho historicamente tem entre seu público setores menos reacionários da direita e a chamada esquerda pequeno-burguesa (que considera que o Rio de Janeiro termina no Leblon e milita por causas identitárias em detrimento da luta de classes). Diante dessa realidade, não pegaria bem para a “progressista” Globo compactuar com as pautas medievais do “núcleo cômico”.
Por outro lado, articulistas como Merval Pereira e Miriam Leitão criticam o “núcleo cômico” (nesse caso, incluindo o próprio Bolsonaro) por considerarem que suas sandices exageradas podem, de alguma forma, postergar questões mais importantes, como as reformas econômicas.
No entanto, é no discurso sobre o “núcleo das maldades” que reside a real aliança Globo/Bolsonaro. Aliás, ainda durante o período eleitoral, em 2018, após Bolsonaro declarar abertamente que, se eleito, adotaria a agenda liberal e, não obstante, esgotadas todas as possibilidades de a direita tradicional vencer o PT nas urnas, Rede Globo e toda a grande mídia não tiveram escolha: apoiaram o “mito”.
Não importava se Bolsonaro acredita em kit gay, nazismo de esquerda ou negava a escravidão. A indicação de Paulo “Posto Ipiranga” Guedes para o Ministério da Economia tranquilizou o mercado e, consequentemente, seu principal porta-voz: a imprensa hegemônica.
É fácil corroborar a tese de que há uma aliança firme entre Globo e governo via “núcleo das maldades”. Sergio Moro, por exemplo, é incondicionalmente representado de maneira positiva pela Globo. Mesmo na época de maior vulnerabilidade – quando o site The Intercept Brasil oportunamente denunciou os desmandos e excessos da Operação Lava Jato -, a Rede Globo fez o possível para blindar o ministro da Justiça.
Já a única crítica negativa global à política econômica do governo é a sua “morosidade”. Eles querem que o Planalto seja mais intenso e rápido nos ataques à população. Desse modo, a Globo consegue apoiar as maldades do governo e, simultaneamente, ao criticar o “núcleo cômico”, ainda posa como “progressista” e “isenta”.
O empresário estadunidense do ramo da comunicação, William Randolph Hearst, principal inspiração para criar o protagonista de Cidadão Kane (Charles Foster Kane), ficaria surpreso com tamanha astúcia discursiva.
Em última instância, no tocante à aplicação do receituário neoliberal, os Marinho, como toda a grande mídia, estão “fechados com o mito”.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.