Monday, 16 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1305

Campeão da baixaria na TV 20 anos atrás, Pânico mostra que ainda vive no passado

(Foto: Pixabay)

Recentemente, um fato envolvendo o Programa Pânico, da Jovem Pan, agitou as redes sociais da internet e o meio midiático. O apresentador da atração, Emílio Surita, teria “imitado” em tom jocoso o jornalista Marcelo Cosme, que apresenta o programa Em Pauta, exibido pela Globo News. Cosme é homossexual assumido.

Colegas de emissora e vários artistas saíram em defesa do apresentador global, numa demonstração de repúdio contra aquilo que classificaram como um ato homofóbico por parte de Surita. 

Tal fato chama a atenção não apenas pelo comportamento claramente desrespeitoso contra Cosme, mas também por um outro importante motivo que nos remete para mais de 20 anos atrás e que escancara a verdadeira essência da atração veiculada pelo grupo de mídia paulista.

Nascido como programa de rádio na Jovem Pan FM de São Paulo, em 1993, o Programa Pânico ganhou uma adaptação, dez anos depois, na Rede TV!, emissora de televisão aberta de alcance nacional. 

Após mais de oito anos de enorme sucesso – inclusive disputando com a Globo a liderança de audiência na Grande São Paulo durante o seu auge –, o programa migrou para a TV Bandeirantes (ou Band, como é mais conhecida), na qual foi batizado de Pânico na Band. Por lá, ficou no ar até 2017. Na emissora do Morumbi, o sucesso nem de longe se assemelhou ao conquistado anteriormente, o que não impediu o dominical de continuar a colecionar polêmicas dos mais variados tipos.

Mas todo esse sucesso também trouxe um ônus. Fenômeno de audiência durante quase uma década na Rede TV!, o conteúdo do programa gerou a insatisfação de um público já cansado de ligar a televisão e se ver diante de produções de qualidade, no mínimo, duvidosa. 

Conhecida por explorar a imagem de famosos, ter forte apelo sexual e expor pessoas (principalmente minorias sociais) a situações vexatórias por meio de quadros de teor grotesco, a atração passou a frequentar as listas de programas considerados de baixo nível elaboradas e divulgadas pela campanha “Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania”.

Por respeito aos direitos humanos na TV

Essa mobilização nacional em prol de mais qualidade na programação da TV aberta teve início durante a VII Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2002, numa parceria entre 60 entidades da sociedade civil e a Comissão de Direitos de Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Com base em princípios constitucionais e legais no âmbito da comunicação social, a campanha considerava “baixaria” as atrações de TV que promovessem atitudes que atentassem contra a dignidade humana, entre elas, a discriminação de gênero e por orientação sexual de pessoas ou grupos, tema a que se propõe este artigo.

A partir daí, a campanha passou a receber denúncias por meio do seu site e de um telefone gratuito disponibilizado pela Câmara dos Deputados. Essas manifestações dos telespectadores serviram de base para a formulação de rankings nos quais eram listados os programas que eram alvos da maior parte das queixas.

Sociedade denuncia Pânico

Segundo o documento “Qualidade na TV: 10 anos da campanha Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania”, elaborado em 2013 pela Câmara dos Deputados, o programa Pânico na TV! foi o que mais vezes apareceu no topo dos rankings da baixaria, dividindo esse título com o reality show Big Brother Brasil, da TV Globo. Ambos figuraram em primeiro lugar por três vezes cada um durante o período de existência da campanha.

Mas o humorístico apresentado por Surita – à época ainda na Rede TV! – também foi medalha de ouro em outro quesito, conforme aponta o documento da campanha. Dos 18 rankings divulgados, em que apareceram 51 programas diferentes, o humorístico Pânico na TV! alcançou a marca de 11 aparições. 

E como se não bastasse um destaque tão negativo, é também do Pânico o maior número de denúncias em um só ranking. Como mostram os dados da campanha, a atração recebeu 3.189 reclamações entre os meses de junho e novembro de 2005. As principais queixas da sociedade contra o humorístico foram, entre outras, expor pessoas a situações constrangedoras. Também pesaram contra o Pânico, à época, denúncias que apontaram forte apelo sexual (em especial dando enfoque à mulher como objeto) e discriminação ao público LGBT em seus quadros.

A importância da participação social na TV

Antes de concluir, vale dizer que “Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania” não surgiu para censurar ou impor uma cartilha de como deveriam se portar os veículos de comunicação, pelo contrário. 

Essencialmente, o papel exercido pela campanha foi o de promover a participação direta da sociedade no debate de uma TV mais plural, diversa e de qualidade que valorize a promoção da informação, da cultura (local e nacional) e de conteúdos educativos. Ou seja, tudo o que estabelece a Constituição Federal, desde 1988, em seu artigo 221, mas que o Pânico nunca levava ao ar.

Nesse sentido, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, por meio da campanha, atuou no sentido de se fazer cumprir o artigo supracitado, o qual diz que é papel dos poderes da União oferecerem os meios legais para que a sociedade possa se defender de conteúdos exibidos por veículos que atuam sob o regime de concessão pública (caso do rádio e da TV aberta) e que, porventura, contrariem os princípios previstos naquele dispositivo constitucional. 

Aliado a isso, a campanha buscou conscientizar os anunciantes a não divulgarem suas marcas em programas que, reiteradamente, violavam os direitos humanos e geravam insatisfação do público.

Quanto ao Pânico, ele foi extinto da TV aberta em 2017, quando deixou a grade da Band, mas se mantém firme e forte em seu formato radiofônico já conhecido do grande público, podendo ser sintonizado tanto no rádio quanto no canal de TV (digital e fechado) do grupo Jovem Pan. 

Infelizmente, ao fazer “piada” com gestos ou palavras ofensivas a pessoas públicas que não lhes agradam – seja por razões de orientação sexual, étnicas, religiosas ou sociais -, Emilio Surita e seus colegas de trabalho continuam, de forma deliberada, não apenas a menosprezar o relevante papel que os meios de comunicação de massa exercem sobre a sociedade e seus rumos, mas também a repetir os graves erros de um passado marcado por violações reiteradas à dignidade humana. 

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Vilson Vieira Junior é jornalista formado em Comunicação Social e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Já escreveu diversos artigos sobre mídia e direitos humanos, regulação e legislação das comunicações para várias publicações, como o Observatório da Imprensa, o Observatório do Direito à Comunicação e em jornais do ES.