Há algumas semanas, uma polêmica referente à televisão tomou conta das redes: o apresentador Rodrigo Hilbert, que capitaneia o programa de culinária Tempero de Família no canal GNT, foi amplamente criticado por exibir uma cena em que mata uma ovelha para fazer um churrasco. A exposição de todo o processo durante o programa gerou uma série de discussões e levou o canal a optar por uma nova edição, em que retiraria a cena do ar.
Os argumentos foram vários e remetem a discussões interessantes. Houve os que disseram que tudo bem comer a carne, mas ver o (inevitável) caminho que a leva até as mesas já é um pouco demais. Houve os veterinários que se manifestaram dizendo que já há processos mais “humanizados” para o abate, e que a exposição deste método brutal é, portanto, um mau serviço feito pelo programa à população (quanto a este argumento, vale lembrar que Tempero de Família, como tantos programas hoje nas grades das emissoras, associa-se a um discurso de “vida simples”, de retorno às origens, e que as cenas da morte da ovelha foram gravadas em uma pequena propriedade rural em Santa Catarina; remetia, assim, à ideia de trazer luz aos prazeres e à sabedoria simples da vida no campo).
Dentre tantos raciocínios expostos, há um que particularmente me chamou a atenção: alguns comentaram que o Tempero de Família errou ao, de alguma forma, estetizar a morte da ovelha (por exemplo, a edição do programa mostra o sangue escorrendo, mas suprime os gritos do bicho). Ou seja, pecou ao colocar um contorno bonito e algo saudosista em um episódio que é, essencialmente, violento. Ao alocar o ocorrido na estética inegavelmente bela da série da GNT – e ao associar-lhe ao tom acolhedor e familiar que transparece desde o nome do programa – apaga-se a brutalidade da morte, tornando-a menos incômoda.
Este argumento se sustenta na seguinte premissa: quanto mais realista for uma representação, maior a possibilidade de ela causar alguma mudança. Seria só por meio do choque do “mundo real” que nós conseguiríamos, de fato, nos mover e mudar, de alguma forma, nossas opiniões. Os que se recusam a olhar as coisas como elas são seriam os hipócritas, os ingênuos, os manipuláveis.
Se formos observar com mais afinco, notaremos que esta é uma premissa bem estabelecida entre nós. Acreditamos que, quanto mais vermos a “vida como ela é”, maior será a possibilidade de que a gente saia de nossa confortável cama de passividade e comece a fazer alguma coisa. De certa forma, é isto que sustenta os programas policiais ao estilo Brasil Urgente e Cidade Alerta, que entende que quanto mais for exposta a “cara da bandidagem” – as cenas de perseguição, o choro das vítimas, o semblante envergonhado ou cínico dos criminosos – mais é possível que isto cause mudanças reais nas pessoas e, consequentemente, nas autoridades.
Há um problema neste raciocínio, pois ele é um tanto ingênuo ao deixar de constatar que não existe forma de mostrar o real sem fazer escolhas, recortes, renúncias. Diferentemente do que muitos de nós imaginam, a representação que se pretende realista é também baseada numa estética (que pode inclusive ser forjada) que precisa ser reconhecida pelo espectador como tal para causar estes chamados efeitos de realidade. Os programas policialescos, por exemplo, fazem circular uma espécie de estética da insegurança travestida de transposição da realidade na televisão.
Há também uma certa singeleza em achar que uma imagem, por ser mais “bruta” (por exemplo, as emissões televisivas ao vivo, que capturam o calor do momento, os vídeos de celular mandados por espectadores, ou os documentários realizados pelas organizações dos direitos dos animais), estaria logicamente mais próxima do real do que outras imagens. Há mais elementos neste caldo do que julga nossa vã filosofia. É preciso reconhecer que “realismo” também é um código que pode ser dominado (e mesmo domesticado para interesses diversos).
Os grampos da polêmica
Também se insere neste contexto outro episódio de uma semana turbulenta, que se refere aos “vazamentos” das conversas de Lula com tantos outros personagens políticos. Há coisas abjetas sendo ditas – especialmente no que diz respeito ao tratamento da instância pública, como na conversa entre Lula e Eduardo Paes – mas interessa-nos aqui, especialmente, a lógica que está por trás do sentimento de revolta quanto às falas. De alguma forma, a polêmica causada pelos áudios se insere na ideia de que as conversas mantidas no privado seriam o “Lula real” agora revelado em detrimento ao “Lula personagem”, estetizado para as massas. Ter contato com o “Lula realista”, o Lula dos bastidores, seria ver as coisas como elas são e, por isso, estimular a sua morte política.
Novamente, há aqui uma espécie de imprecisão na lógica de que, no espaço em que compartilhamos entre os nossos, nas áreas em que descansamos das batalhas diárias, somos mais nós mesmos do que em outros locais, e é por estes vazamentos que devemos ser avaliados (imagine se todos os terapeutas do Brasil resolvessem agora gravar e vazar todas as barbaridades que ouvem, destinadas a nascer e morrer naquele espaço! Não haveria mais ser humano respeitável no mundo)
Em certa gravação, a ex-primeira dama Marisa Leticia pontua: “Se as pessoas soubessem o que acontece entre a Justiça e a Política, ficariam enojadas!”. Ela tem total razão, nesta que talvez seja a frase mais ponderada capturada por estes grampos. Isto diz respeito a muito mais que as conversas mantidas por Lula, e certamente a crueza das falas seria a mesma independente de quem fosse o político grampeado (ainda que alguns prefiram imaginar o contrário). Mas é realmente lamentável que o único caminho que vislumbramos para tentar endireitar as coisas seja a derrubada entre os muros da vida pública e da vida privada, ou seja, tudo aquilo que nos tornou civilizados. Talvez ainda não estejamos preparados para olhar lucidamente para as entranhas da ovelha que consumimos todos os dias.
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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha