Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“Não dá para entender”

Na segunda-feira (2/11), ao repercutir o racismo sofrido pela atriz Taís Araújo nas redes sociais, a jornalista e apresentadora do programa Studio i (Globo News) Maria Beltrão, afirmou que “não dá pra entender” essas atitudes racistas. Imediatamente após ouvir o referido comentário, me veio a indagação: como não entender, se a mesma Rede Globo de Televisão, seja na teledramaturgia, seja em outros tipos de discursos, incluindo o da própria apresentadora em questão, volta e meia reproduz o racismo? Na semana anterior, ao comentar dados negativos referentes à economia brasileira levados pela comentarista de economia do programa, Flávia Oliveira, a apresentadora afirmou que “a coisa está preta” e provocou certa “saia justa”, a qual imediatamente foi contornada com o humor e a simpatia característicos de Maria Beltrão.

A relação entre o branco colonizador e a negra e/ou indígena colonizada teria gerado uma harmonia racial no país, o que criou o mito da democracia racial, fundado por intelectuais – entre eles Gilberto Freyre – e defendido por muitas pessoas. Para a pedagoga e ministra da Cidadania Nilma Gomes (2012), a imagem de harmonia racial foi construída ideologicamente e reforçada das formas mais variadas, tornando-se muito aceita pela população brasileira. Ainda de acordo com a autora, por meio de “vários mecanismos ideológicos, políticos e simbólicos”, essa suposta harmonia foi introjetada (e ainda o é) por negro(a)s, índio(a)s, branco(a)s e outros grupos étnico-raciais brasileiros.

Porém, é preciso ressaltar que, volta e meia, comportamentos racistas são registrados na sociedade brasileira, os quais, gradativamente, vêm colocando em xeque essa suposta democracia racial. Fatos como as agressões verbais dirigidas contra a jornalista Maria Júlia Coutinho, a “moça do tempo” do Jornal Nacional (Globo); o mais recente episódio envolvendo a atriz Taís Araújo, também da Rede Globo; as inúmeras cenas cotidianas de racismo contra cidadãs e cidadãos negro(a)s comuns, bem como o racismo simbólico presente nos mais variados âmbitos do país, revelam quão racista é a sociedade brasileira, que se nega a aceitar essa realidade tão cruel.

Infelizmente, o racismo não está somente em atitudes isoladas de indivíduos covardes, como esses que atacaram, por meio das redes sociais, a jornalista e a atriz. A questão é muito mais complexa e profunda. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2014, revelam que em 2013, trabalhadore(a)s negro(a)s receberam o equivalente a 57% dos salários pagos aos trabalhadore(a)s branco(a)s; o mesmo instituto, no censo 2010, revelou que, das pessoas não alfabetizadas com 15 ou mais anos de idade, 30% são brancas, enquanto 70% são negras; e o Ministério da Justiça informou, em 2015, que 67,1% da população carcerária é formada por negro/a/s, enquanto apenas 31,3% é formada por branco(a)s.

Como não compreender o racismo?

Diante desses dados, como não entender o racismo que está impregnado na sociedade brasileira? Só se os interpretarmos de maneira racista, afirmando que essas pessoas negras que se encontram nas condições supracitadas o estão porque o quiseram. Do contrário, vamos compreender essas situações como o resultado de uma estrutura social e cultural que, historicamente, tem negado à população negra deste país as oportunidades iguais em relação às da população branca.

É sempre bom ressaltar que o racismo não está apenas no mercado de trabalho, nos sistemas educacional e prisional, mas se encontra em todos os espaços possíveis: está nas embalagens de fraldas descartáveis, que apenas colocam bebês brancos, e de preferência de olhos claros; está nas publicidades de produtos de limpeza (como naquela que coloca a dentista e a médica falando da eficiência do detergente, como protagonistas, enquanto as empregadas domésticas [negras], as que realizam os serviços, aparecem apenas como coadjuvantes); está no seriado de televisão cujo autor diz haver querido dar protagonismo a atrizes negras, mas que as colocou para interpretar papéis altamente estereotipados e subalternos (a “negra gostosa”, a empregada doméstica); está também na linguagem que se usa cotidianamente, e também na mídia, como “magia negra” – para designar rituais religiosos considerados maléficos; “mercado negro” – para relacionar alguma transação clandestina; “a coisa tá preta” – para referir-se a situações ruins, como fez a jornalista e apresentadora Maria Beltrão, que, provavelmente, o fez de maneira inconsciente, mas que demonstra como o racismo está impregnado em nossa sociedade.

Aliás, os meios de comunicação, como afirma o sociólogo estadunidense J.B. Thompson (2012), são uma ferramenta técnica capaz de servir como fixadora de conteúdo simbólico. E, de acordo com o também sociólogo francês Pierre Bourdieu (2002), essa tipologia de poder é ainda mais eficaz porque, muitas vezes, passa despercebida e consegue, inclusive, a anuência daquele(a)s que são alvo do exercício desse poder, já que, conforme o teórico, os sistemas simbólicos são instrumentos de dominação que promovem a integração efetiva das classes dominantes e a integração fictícia das classes dominadas para assegurar a reprodução da cultura dominante, a legitimação de hierarquias e distinções que escondem as reais funções dos sistemas simbólicos.

Acompanho, sempre que possível, o programa Studio i, que vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 14 às 15:30 (horário de Brasília), no canal fechado Globo News. Considero um excelente programa, que sempre discute pautas interessantes e oportuniza às pessoas que acompanham essas discussões refletirem acerca das temáticas abordadas. Mas, nesse mesmo programa, dos inúmeros profissionais comentaristas que dele participam (além da apresentadora, em geral cada edição apresenta três ou quatro comentaristas), apenas uma dessas pessoas é negra (a comentarista de economia Flávia Oliveira), o que demonstra como negras e negros não têm quase espaço na referida emissora – tanto no Studio i, como também na maioria da programação, o que não deixa de ser um racismo simbólico.

Por isso, quando consideramos as questões supracitadas, como não compreender o racismo? O que é difícil de compreender é como alguém, sobretudo uma jornalista como Maria Beltrão, não entende o racismo no Brasil. Isso, sim, não dá para compreender. E é por essa e outras que “a coisa fica cada vez mais branca”.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

GOMES, Nilma. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Alguns-termos-e-conceitos-presentes-no-debate-sobre-Rela%C3%A7%C3%B5es-Raciais-no-Brasil-uma-breve-discuss%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2015.

THOMPSON, John. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social dos meios de comunicação. Petrópolis: Vozes, 2012.

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Verbena Córdula Almeida é doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo e professora adjunta da Universidade Estadual de Santa Cruz, BA