Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O antídoto às narrativas de superação na cobertura das olimpíadas

Já abordei algumas vezes nessa coluna o que considero ser um defeito velado em boa parte do jornalismo televisivo, que é a irresistível atração que as emissoras têm às histórias de superação, dos que romperam barreiras consideradas intransponíveis à maioria. Cito este problema como velado porque muitos jornalistas consideram esta estratégia como legítima e desejável – afinal, comunica com facilidade e causa algum tipo de reação imediata nas pessoas pela via (fácil, eu diria) da emoção. É um recurso bastante típico do jornalismo esportivo, mas não é exclusivo dele.

Com a cobertura das Olimpíadas, já estamos vendo uma inflação das histórias de superação na TV – afinal, o que caracteriza alguém ao posto de “olímpico” é justamente ter atingido patamares muito mais altos que os demais indivíduos. Isto legitima ao jornalismo a abusar de estratégias que, na maior parte das vezes, pouco informam e mais comovem, como apontou o crítico Maurício Stycer em texto sobre os cinco pecados do “jornalismo esportivo fofo”, a partir de uma série de reportagens do Jornal Nacional sobre atletas olímpicos. O fato de que o Brasil apresenta condições extremamente adversas ao esporte de alto rendimento é ainda a matéria-prima para que as emissoras explorem ainda mais os relatos forçadamente comoventes.

Mas, afinal, qual o problema da história de superação? Cito aqui a psicanalista Ana Suy Sesarino Kuss: o problema das “histórias de superação” é que as pessoas comuns ficam se sentindo umas porcarias. Eu concordo, e agregaria: o problema da história de superação é que nem a pessoa que é narrada por ela consegue se identificar com aquele ser tão perfeito e, por isso mesmo, pouco humano. A história de superação é sobre ninguém – ou melhor, é sobre a idealização opressora de alguém que não existe.

E é claro que esbarramos aqui com algo que costumo abordar como uma dificuldade intrínseca à TV, essencialmente um veículo para as massas, que é trazer complexidade e ainda continuar acessível e atraente a um grande público. Não por acaso, estas histórias insurgem como recursos fáceis a serem explorados pelos programas de entretenimento do fim de semana, como o Domingo Show da Record e seus vários semelhantes. Não por acaso, as “contranarrativas” muitas vezes surgem nas emissoras fechadas ou nas extensões dos veículos em TVs online.

Edmundo e a narrativa dos que falharam

Chego então à interessante entrevista com o ex-jogador de futebol e atual comentarista de TV Edmundo, publicado esta semana pelo UOL Esporte. Intitulada “Animal Regenerado”, a reportagem conta com entrevista em vídeo feita com Edmundo na estrutura da TV Bandeirantes e produzida pela TV UOL. São três vídeos curtos, mas bastante instigantes, que acompanham a reprodução da entrevista em uma reportagem multimídia.

Enquanto personagem midiático, Edmundo tem uma trajetória marcada pela polêmica, como alguém que suscitou amores e ódios no público. O próprio apelido recebido durante a carreira, Animal, já aponta a uma persona indomada, sem freios, alguém que cede o tempo todo aos próprios desejos. Certamente, a impulsividade do “Animal” é o que angariou muitos dos seus fãs, que viram nele suas pulsões mais secretas serem projetadas.

Mas, como nas narrativas mitológicas, o descontrole tem seu preço e Edmundo viu o inferno – e na entrevista, define o diabo, espirituosamente, não como um ser chifrudo e de tridente na mão, mas alguém que “vem bonito, de olho verde, com um peitão bonito, uma bunda bonita”. Edmundo é alguém falho, ferido, que ganhou o mundo e o perdeu na mesma medida. Dentre os episódios negativos, o principal deles: em 1995, enquanto dirigia seu carro (um imponente Jeep Cherokee), bateu num humilde Fiat Uno, vitimando três pessoas.

A entrevista em vídeo se centra especialmente neste episódio. O conteúdo que ele aborda tem algo de inédito, pois traz o outro lado da narrativa de superação. Como vive consigo mesmo alguém que falhou miseravelmente, alguém que cometeu um crime, o pior de todos, tirou a vida de outrem? É importante observar como o jornalismo dá espaço – isto quando concede este espaço – à fala dos algozes.

Independentemente de suas intenções, Edmundo oferece sua cara a bater ao falar para uma câmera sobre o episódio. Dá corpo àquele que convive com a culpa a que jamais expurga totalmente. Ainda que tenha encontrado alguma redenção com as famílias envolvidas, o jogador sabe que a ferida é incurável. Seus olhos começam a marejar ao dizer que “passados estes anos todos, as pessoas não lembram muito, mas intimamente eu me lembro todo dia, porque eu não queria que aquilo acontecesse, mas aconteceu”.

Profundamente humana, a entrevista de Edmundo comove justamente por trazer a narrativa dos feridos pelo trauma, dos atingidos e dos causadores da dor – não nos revezamos nestes papéis, afinal, desde o primeiro dia de nossas vidas? Tal como Quíron, o minotauro ferido que adquire o poder da cura, Edmundo nos lembra que aquele que sofreu (mesmo que seja o sofrimento incalculável da culpa) carrega inevitavelmente alguma sabedoria. É louvável observar que isto se dá na entrevista sem o moralismo tão típico da edição televisiva.

Por fim, encontrei ainda uma outra comovente contranarrativa das histórias de superação no episódio de MasterChef Brasil desta semana. Aparentemente, há vários favoritos para ganhar o primeiro lugar deste talent show, mas o participante Leonardo tem se destacado na narrativa do programa justamente por sua postura. Leo parece ser preterido por seus colegas, que formaram alianças de amizade entre eles. Em todas as provas, ele claramente identifica uma torcida contra ele, sem grandes razões.

Com muita perspicácia, Leo prefere não reagir aos concorrentes, mas escolhe um único espaço para construir a própria narrativa: quando profere pequenos solilóquios à câmera da Bandeirantes. Nestes momentos solitários, Leo lembra dos valores trazidos pela família, de origem japonesa, e da importância de não reagir na mesma moeda, além de concentrar-se em si mesmo e não nas interferências externas.

No último desafio do programa, os participantes deveriam produzir um sorvete artesanal. Azarão, Leo revelou que nunca havia preparado alimento semelhante, e opta por criar uma receita muito simples, familiar, lembrando de coisas que seu pai dizia. Ao receber o retorno positivo de Paola Carosella, Leonardo explode em lágrimas que se contrapõem à postura silenciosa que mantém até então, angariando ainda mais simpatia de quem o assiste. Eis aqui uma pequena e inusitada história de superação construída de forma instintiva por um participante muito inteligente.

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Maura Oliveira Martins é  jornalista, professora universitária e editora do site  A Escotilha