Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O desafio de tratar a transexualidade na telinha

Quem acompanha as discussões sobre televisão trazidas neste espaço deve já ter notado que boa parte dos textos tenta refletir sobre os impactos das tecnologias nos processos de comunicação, em especial os jornalísticos. Muito tem-se falado sobre as modificações trazidas pelas máquinas, que hoje tornam tudo mais fácil, acessível – afinal, as câmeras estão em todos os lugares, gerando registros por todos os ângulos, e as ferramentas digitais tornam (mais) possível concretizar seus próprios conteúdos. Mas há outro aspecto importante e bem menos abordado das tecnologias: o quanto as barreiras geográficas se tornam cada vez menos estanques à televisão – afinal, vemos cada vez menos tevê na tevê, e mais nos outros dispositivos que temos em mãos.

Traduzindo: essa “televisão sem fronteiras” veiculada via internet torna possível o acesso a outras atrações menos hegemônicas, mais plurais, mais dedicadas a trazer à tela diversas visões de mundo, complexificando o olhar sobre os mesmos assuntos. Se bem soubermos usar as tecnologias, teremos acesso a vários programas que não veríamos nos tempos que as emissoras se resumiam apenas às capturadas pelas ondas magnéticas da televisão. Basta saber “garimpar” para transcender as fronteiras e encontrar pequenas pérolas da televisão feita pelos estados brasileiros.

É o caso do programa TVE Repórter, uma produção da TV Educativa gaúcha, que propõe uma leitura aprofundada de temas do momento. Aparentado, em alguma medida, do Profissão Repórter da Rede Globo, pela proximidade da linguagem, o TVE Repórter tem como primeiro trunfo o fato de estar numa emissora estatal, trazendo uma possibilidade de abordagem um tanto mais livre das pressões inevitavelmente impostas às televisões comerciais. Como consequência, o programa enfrenta pautas ainda bem raras nas emissoras hegemônicas, com um olhar mais provocativo e pouco condescendente com o espectador.

Vejamos, por exemplo, o episódio “Travestis e Transsexuais”, que busca trazer ao público as dificuldades da vida destes cidadãos, ainda que várias leis já tenham sido aprovadas no intuito de garantir seus direitos – em especial, a que homologou o direito a uma nova certidão com o novo registro civil. Talvez você não tenha qualquer relação com a causa: não seja homossexual, não conheça qualquer pessoa trans. Ainda assim, o desafio da edição do TVE Repórter é, de alguma forma, transportá-lo para a vida destas pessoas, calçar os seus sapatos e caminhar tal qual elas caminham diariamente: a dificuldade de achar um emprego, achar uma sobrevivência que não seja na prostituição, a não ser olhada de forma enviesada, a poder registrar as ocorrências sofridas de violência, tal como qualquer outro cidadão.

O olhar do TVE Repórter ao tema é firme, realista, pouco indulgente aos que desejam “florear” a realidade – por exemplo, há até beijo gay, que continua um tabu na televisão. No entanto, o beijo em questão não é “domesticado” à plateia da novela das oito; é um beijo entre presidiários.

Como mostra a reportagem, as leis, que felizmente existem, não atualizam imediatamente a vida social. TVE Repórter abre a edição entrevistando Valeria Houston Barcellos, recepcionista fluente em quatro línguas e cantora. Ela é uma das homenageadas na Assembleia Legislativa com o título de mulher cidadã de Porto Alegre – talvez, imagina-se, pelo exemplo que pode significar à causa das transexuais, por ter conseguido escapar da vida marginal que sobra a tantas delas.

Valéria, na Assembleia, pontua: “sei que teve um certo desconforto com relação ao meu nome por eu ser uma mulher trans, mas quero deixar bem claro a todos que judicialmente está tudo correto, se é isso que incomoda. Se as pessoas não entendem a causa trans enquanto mulher, que entendam judicialmente”. A luta é diária e se apresenta nas sutilezas. Valéria tem clareza sobre o direito que reivindica: de aparecer nas páginas dos jornais por suas conquistas, e não nas páginas reservadas a ela, da editoria policial. O que ela quer, de fato, é bastante simples, que sua voz seja ouvida. E é isto o que a narrativa do TVE Repórter proporciona a ela.

Fazendo jus ao viés educativo que permeia a missão das emissoras estatais, o programa equilibra a premissa da realidade, fundamentalmente atrelada ao produto televisivo (por esta razão, ouve muitas travestis e transexuais), e a consulta às falas de fontes mais especializadas, que aqui são menos convidadas a “traduzir-se”. É quase como se o programa reivindicasse ao seu espectador: não tornaremos aqui as coisas mais fáceis a você, justamente por acreditar que todos que nos assistem estão aptos para acompanhar a discussão. O mundo é complexo, então por que o debate não seria?

A complexidade do cisgênero

Aí chegamos, por exemplo, no ápice das discussões de gênero, com a psicóloga Raquel Silveira, do núcleo de pesquisas sobre sexualidade e relação de gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela explica a complexidade do conceito de cisgênero, hoje uma realidade a quem estuda esta questão, que define as pessoas cujo gênero é o designado no seu nascimento (ou seja, todos os heterossexuais assim nomeados desde que nascem, que não fazem uma escolha sobre a própria sexualidade, assim como os homossexuais também não a fizeram).

A psicóloga, enquanto dá a explicação que um homem trans pode gerar um filho no seu ventre, pois o gênero é uma condição cultural, provoca instintivamente a repórter Angélica Coronel, que de pronto responde com o riso. Raquel diz: “tinha que filmar o teu rosto enquanto eu falo isso”. Esta interação, é bom lembrar, poderia ser cortada da edição, o que não acontece. Esta espécie de “falibilidade” do jornalista, aqui humanizado, representado enquanto indivíduo, alguém desconectado da ideia de objetividade associado em essência ao jornalismo, é ainda uma grande qualidade da narrativa do programa.

A proximidade entre pauta e a visão de mundo da repórter é evidente – se fosse diferente, provavelmente nem haveria reportagem – mas sutil, afastada do tom sensacionalista dos repórteres que choram com a dor alheia e promovem uma espécie de “espetáculo do sofrimento”. A dor de quem passa por aquelas situações é suficientemente evidente para que tenha que ser significada por um texto ou uma narrativa excessiva. O fato de a reportagem estar onde está – nas ONGs que protegem as trans, na ala para gays e travestis dos presídios mais perigosos do país – já é garantia suficiente da realidade. É isto que, como dito na abertura do texto, garante a difícil tarefa de calçar os sapatos de outrem à distância, via televisão.

Para finalizar, ainda em clima de “dia das mães”, é importante salientar que, salvo louváveis exceções, a maioria das pessoas entrevistadas como aliadas à luta das transexuais e travestis – advogadas, delegadas, deputadas, psicólogas – são mulheres, sejam trans ou cisgênero. Não me parece exatamente um acaso que seja essa a camada da população que se mostra mais propensa ao acolhimento, à compreensão da dor do outro. O desejo, portanto, é que esta mensagem de empatia, carregada involuntariamente pelo TVE Repórter, seja a verdadeira contribuição a restar de uma data que é essencialmente comercial.

Segue o programa

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha