Levei um susto quando vi e li a notícia. Você mal assumiu um dos principais programas da televisão brasileira e tomou aquela posição de comando tão comum na nossa sofrida América Latina – quem manda no Roda Viva sou eu e, enquanto eu estiver por cima, não vem que não tem: Lula não vai ter vez! Ele não!
Todo dia de manhã, no Alvorada, em Brasília, um grupo de fanáticos vaia nossos colegas repórteres, acusados de torcer a verdade contra o presidente enviado por Deus. E eles próprios, Bolsonaro e seus filhos, não perdem nenhuma oportunidade para acusar a imprensa de estar fermentando mentiras contra seu governo, enquanto são eles, o pai e os filhos, os criadores e espalhadores de fake news, das mentiras que os levaram e os mantêm no poder.
O jornalismo brasileiro foi posto no pelourinho por todas essas novas lideranças, que chegaram ao poder aos gritos de aleluia, versículos bíblicos, jejum e rezas de joelhos nas principais ruas de São Paulo. Os jornalistas vão se tornando o alvo dos ataques, por enquanto só verbais, dos defensores de uma teocracia guiada por aproveitadores da fé, comandada por um desvairado que acredita ou finge acreditar nessa farsa.
E você, Vera Magalhães, mal detém o controle de um programa de alta audiência, que poderia restaurar a credibilidade e a confiança em nossa profissão neste momento nacional de desvario, o que você faz?
Sem farda, sem galões coloridos verde-amarelo, você literalmente assume o poder e manda às favas os princípios éticos de nossa profissão. Porque o jornalismo livre tem de respeitar a liberdade de opiniões e de reconhecer o direito de se comparar ideias. Principalmente neste momento de caos, no qual a ignorância no poder desafia a ciência e coloca em risco dezenas e talvez centenas de milhares de brasileiros.
Mas não é só. Não se trata mais de sua ex-rádio Jovem Pan, que nestes últimos anos faria corar e revoltar nosso colega Reali Jr., tantos anos correspondente na Europa, como eu. Nem de uma TV Record, convertida ao evangelismo e dedicada à sua finalidade de subverter e converter nossa cultura e nossas tradições no modelo cristão americano. Nem da TV Fox News, ligada doutrinariamente ao presidente Trump.
Seu programa Roda Viva é transmitido por uma televisão mantida por uma entidade de direito privado, a Fundação Padre Anchieta, mas bancada com dinheiro público. Isso quer dizer entidade laica, e não partidária. Indiretamente, a Fundação Padre Anchieta financiada pelo estado de São Paulo pertence a todos os paulistas, não importa sua religião ou seu partido político. Nos próprios fundamentos criadores da TV Cultura devem estar expressos sua preocupação laica e apartidária. Isso faz parte da democracia.
Não cabe a você, Vera Magalhães, vetar e dizer, como autoridade suprema, quem nunca será entrevistado, pois sua credibilidade e responsabilidade diante do povo paulista exigem serem ouvidas as lideranças mais importantes do momento, sejam ou não do seu gosto, que você admire, prefira ou seja fã, tenha ou não trabalhado indiretamente para tal líder ter sido eleito ou derrotado nas eleições.
Não é o jornalista – não quero estar ensinando o padre nosso ao vigário – que decide. É o momento político, o surgimento de novas forças e coligações ou a formação de novos grupos políticos que ditam quais líderes deverão ser debatidos para dar ao povo uma visão da situação do momento. Se você tem, como já demonstrou, suas preferências, deve guardá-las para si nessa sua nova função, na qual se exige imparcialidade para maior credibilidade.
Acabo de ler uma pesquisa do Ipsos, publicada pela revista Exame, segundo a qual o povo brasileiro está no topo da lista em matéria de ignorância sobre a realidade, pouco abaixo da África do Sul. E se continuarmos a selecionar, segundo nosso critério pessoal, o que o povo deve ou não saber, isso só pode piorar.
Deve-se garantir a cada cidadão o direito de decidir, ele próprio, o que é bom ou ruim, certo ou errado. Essa é uma tarefa de nós todos, jornalistas – facilitar o acesso de todos a todas as informações, para que as pessoas possam, além de aprender, saber optar.
Você não gosta do Lula, fez campanha contra ele, tem aversão? É seu direito como cidadã. Não como produtora do programa Roda Viva. O povo tem o direito de saber o que pensam Doria, Lula, Bolsonaro, Ciro e outros que forem surgindo.
Nós, jornalistas, devemos contribuir para que todos os cidadãos vejam, na sua televisão, esses personagens defendendo seus projetos. Sem filtros, ao vivo. Você não tem o direito e talvez nem seja da sua competência impedir isso.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.