O maio de 1968 francês foi um marco para a cultura ocidental. Um protagonismo da juventude que se dava a ver também em outros territórios. Esses movimentos sugerem um ponto de encontro entre a micropolítica e a macropolítica. Ao mesmo tempo em que foram precursores de temas que, hoje, estão na ordem do discurso – as políticas de gênero, as liberdades individuais -, apontam também para certo culto das aparências que caracteriza a sociedade contemporânea.
Esse ambiente viu nascer uma nova disciplina no interior das teorias linguísticas: a análise do discurso francesa. O filósofo Michel Pêcheux, influenciado pelo pensamento de um outro Michel, o Foucault, problematizou a ideia das formações discursivas que dão, em parte, os limites e possibilidades de expressão do sujeito. Não há controle total dos sujeitos sobre a linguagem; os deslizamentos ocorrem por conta da formação discursiva a que ele se filia e também ao inconsciente (o outro em mim, na definição de Lacan). O discurso é o objeto teórico, construído no contexto do maio de 1968, que parte da linguagem para perceber nela as determinações ideológicas e a presença do inconsciente. O não dito precede e domina o dito.
As novas formas de circulação trazem ainda mais complexidade ao cenário e ao exercício do jornalismo. As entradas ao vivo, em rádio, TV ou na web, são ocasiões propícias para os deslizamentos de sentido, porque escapam à ideia de um roteiro prévio. Os enunciados caem na rede e pautam debates e ataques pessoais. Os comentadores revelam também uma miríade de formações. Há de tudo, de agressões verbais a pontos de vista críticos que enriquecem e contribuem para o debate.
Na semana que passou, dois comunicadores da TV Globo incorreram nos deslizamentos da linguagem que revelam preconceitos muitas vezes não intencionais. Primeiro foi Pedro Bial, em entrevista à Rádio Gaúcha. Ao comentar o documentário Democracia em vertigem, representante brasileiro no Oscar, centrou parte de sua crítica na figura da diretora Petra Costa com um tom em que a aparente informalidade não escondeu doses de autoritarismo e machismo. Na rede, o assunto rendeu ataques pessoais e comentários sobre o fato de Bial ter deixado o jornalismo pelo entretenimento e ter escrito uma biografia de Roberto Marinho com tons chapa branca, dentre outras considerações sobre sua própria carreira de cineasta.
Em artigo no jornal O Globo de domingo, o apresentador fez mea culpa e disse ter experimentado o linchamento virtual. Sua crítica na rádio gaúcha foi sucedida por uma manifestação da Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro acusando o documentário de mentiroso e sua autora de militante anti-Brasil. Diante de tamanho obscurantismo – a utilização de recursos públicos para ataques à liberdade de expressão -, o ex-apresentador do Big Brother recapitulou. “A insegurança do governo e seu temor de que a imagem do Brasil possa ser arranhada por um filme são bobagens, tiros nas próprias patas. Além de mais uma amostra do retardo intelectual de nosso governante, como apontei no rádio, é um escândalo que se gaste o dinheiro público para atacar nossa artista de destaque internacional. Um filme brasileiro no Oscar é sempre bom para o Brasil. Se ganhar, melhor ainda. Viva o cinema brasileiro”, afirmou.
O segundo episódio envolveu o apresentador do Bom Dia São Paulo, Rodrigo Bocardi. Durante entrada ao vivo do repórter Tiago Scheuer, ele se dirigiu ao entrevistado, um jovem negro, perguntando se ele era gandula de um clube de classe alta da capital. O jovem, que vestia uma camiseta com a marca do clube, respondeu que era atleta de polo aquático. As reações na rede foram imediatas apontando o racismo estrutural no episódio. Bocardi se desculpou no Twitter.
“Muito triste a acusação de preconceito. Eu pratico tênis no Clube Pinheiros. Os jogadores de tênis não usam uniformes, mas os pegadores/rebatedores, sim: uma camiseta igual à do Leonel, com quem tive o prazer de conversar hoje. Ao vê-lo com a camiseta que vejo sempre, todos os dias, em pegadores/rebatedores de todas as cores de pele, pensei que fosse um deles. Não frequento outras áreas do clube onde outros esportes são praticados. E não sabia que a camiseta era parecida. Se soubesse, teria perguntado em qual área ou esporte trabalhava ou treinava. Nunca escondi minha origem humilde. Comecei a vida como garoto pobre, contínuo, andando mais de duas horas de ônibus todos os dias para ir e voltar do trabalho e escola. Alguém como eu não pode ter preconceito. Eu não tenho, nunca tive, nunca terei. E condeno atitude assim todos os dias. Mas se ofendi pessoas que não conhecem esses meus argumentos e a minha história, peço desculpas. Não o chamei de pegador pela cor da pele ou pela presença num trem. Chamei-o por ver que vestia o uniforme que eu sempre vejo os pegadores usarem. Peço desculpas a todos e em especial ao Leonel.”
Os dois episódios têm diferentes contextos, mas sinalizam algum aprendizado comum. A cantora Zélia Duncan, em vídeo no Instagram, falou sobre racismo estrutural para exemplificar que todos estamos sujeitos a cometê-lo e que os novos tempos exigem novos cuidados, reflexões e condutas. Mas seria melhor, observa, se Bocardi usasse seu espaço na TV para falar do ensinamento que o episódio lhe trouxe, reconhecendo nele a presença do racismo estrutural. Ali, no calor do acontecimento ao vivo, quem comandou a fala de Bocardi foi o jogador de tênis do clube de elite, e não o garoto pobre que encontrou no jornalismo um caminho de realização e ascensão pessoal.
Na entrevista de Bial à Rádio Gaúcha, os diferentes papéis embaralharam o jogo das formações discursivas. Talvez a pergunta demandasse uma análise do jornalista, mas quem tomou a voz foi o apresentador do Big Brother. O curioso é isso acontecer num momento em que o comunicador parece buscar retomar sua bem sucedida carreira de repórter. O Conversa com Bial tem sido, em certo sentido, um caminho de volta do apresentador ao jornalismo. Boa qualidade de pesquisa, diversidade de pautas e abordagens têm ajudado a qualificar o debate e até a levantar denúncias de impacto jornalístico, como se deu no caso de João de Deus.
A sociedade da transparência, conforme a definição do filósofo contemporâneo Byung-Chul Han, expõe, por vezes, contradições entre as vidas pessoais e os papéis institucionais. A vigilância não poupa os momentos de descontração e evidencia novos elementos na complexa e dinâmica equação da credibilidade, capital simbólico tanto dos profissionais quanto dos veículos. A construção do ethos é atravessada pela memória de nossos passos, acessível a todos. E essa relação entre o que se diz e o que se é (o que se foi) passa também a fazer parte da imagem do jornalista. Essa realidade demanda transparência e autocrítica constantes como atitudes a se somar às práticas deontológicas da profissão. Haverá sempre deslizamentos de sentido e o que importa é o tanto que eles podem servir ao aprendizado e o quanto levar a público essas reflexões se constitui numa atitude ética. A credibilidade como construção constante, nunca acabada, depende também da atenção a esses aspectos.
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Pedro Varoni é jornalista.