Bíblico, psicológico, sociológico, a mini-série “Dois Irmãos” trata de um tema tabu nas famílias, a preferência da mãe por um dos filhos. E as consequências desse amor mal balanceado na cabeça e no comportamento de acordo com a dose de amor recebido por cada um. Como o sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu, “os outros têm que nos amar primeiro para que possamos amar a nós mesmos”
Ciúmes, inveja, raiva, narcisismo , introspecção, incesto explícito ou não, os gêmeos Omar e Yakub são a metáfora de um sistema familiar mais comum do que se imagina. Nos extratos sociais inferiores se traduz nos conflitos bárbaros das prisões brasileiras deste mês. Ou faltou amor em casa ou foi amor mal dosado.
Porque pode desaguar no crime de um dos dois irmãos, violência anunciada já no primeiro capítulo da mini-série, de Omar contra Yakub. A mãe é cúmplice confessa e intelectual. Os filhos , enredados nas malhas do labirinto perverso da educação recebida, reagem tal qual o modelo escolhido pela mãe, consciente ou não da sua escolha.
Como Saramago descreve o diálogo entre Deus e Caim em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, ” que fizeste com teu irmão, perguntou, e Caim respondeu com outra pergunta, era eu o guarda-costas do meu irmão. Mataste-o, assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha ” — Caim culpa a Deus pela preferência descarada do Senhor por Abel. Caim, lavrador , Abel, pastor, as obras de Caim eram sempre más, as de Abel, boas.
Manaus entre os anos 20 e 80, da Belle Époque ao empobrecimento que vai do declínio do comércio da borracha à criação da Zona Franca , “Dois Irmãos”,o livro de Milton Hatoum é obra prima de construção narrativa e leva seus traços na mini-série dirigida por Luís Fernando Carvalho, escrita por Maria Camargo.
Em sépia, com a moldura perfeita e cenário visual apurado, na TV há uma semana desde 9/1, a história é sufocada por choros e berros , gargalhadas e ruídos excessivos num universo auditivo falho –às vezes mal se ouve, mal se entende a fala dos personagens multiplicados cada um em três , de acordo com as fases da vida. Omar é representado por Enrico Rocha, Matheus Abreu, Cauã Reymond e Yakub por Lorenzo Rocha , Matheus Abreu e Cauã Reymond. O pai Halim é Bruno Anacleto, Antonio Calloni e Antonio Fagundes e a mãe Zana é Gabriella Mustafá, Juliana Paes, Eliana Giardini. Trifases de cada personagem principal, o que por si já provoca confusão. Somadas a triângulo amoroso, ciúmes da mulher com o filho, a gravidez da Índia Domingas e o filho nascido no quarto dos fundos como acontece nas famílias patriarcais sem que os donos da casa desconfiem o óbvio de que foi gerado ali mesmo — é informação demais jogada em poucos capítulos.
Os flashbacks sucessivos e os cortes súbitos somados ao efeito plástico afogam o fio condutor com chapéus, rendas, abajures, cadilacs e objetos retrô do mais fino gosto.
Só não dá para reclamar. Dentro do padrão Globo de dramaturgia que obedece à risca ao rebaixamento cultural do público, Luís Fernando Carvalho não faz concessões, não abre mão da invenção e da arte como já havia feito na releitura do ótimo livro “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar para o cinema (2001).
A mini-série extraída de um dos melhores romances contemporâneos é um privilégio para os olhos, com todos os votos de que nesta última semana dê uma reviravolta em favor da linha narrativa, desde o início afogada pelo deslumbre do visual sofisticado.
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Norma Curi é jornalista e ex-correspondente do Jornal do Brasil em Portugal