Em uma obra bastante conhecida, o professor Eugênio Bucci pontua que nós, jornalistas, não costumamos gostar de falar sobre ética. As razões são várias, mas uma delas me chama mais a atenção: como o ofício jornalístico é marcado essencialmente pela rapidez, pelo dinamismo, não há como parar as atividades cotidianas para discutir cada decisão que precisa ser tomada. É preciso continuar sempre fazendo, automatizar o que se faz; caso contrário, a prática jornalística viraria uma espécie de “assembleísmo” sem sentido.
Esta característica inescapável acaba meio que apagando a noção sobre algo inerente à profissão: o fato de que tudo que se faz no jornalismo gera, inevitavelmente, uma vítima. Seja a empresa que foi denunciada, o cidadão acometido por um erro numa matéria ou um político que teve reveladas as suas práticas corruptas, todos são “vitimados” pelo jornalismo, para o bem ou para o mal.
Ou seja, provavelmente se nós lembrássemos disso o tempo todo, nenhum tipo de notícia fosse possível. De alguma forma, me parece que hoje vivemos num momento marcante sobre este não-questionamento em relação à veiculação de certos fatos – algo que se potencializa pela razão que tudo está ao alcance de uma máquina, de um clique, de um celular que vai gerar um vídeo. Tudo se torna filmável, registrável. O grande risco trazido por este fenômeno é o de acharmos que tudo é noticiável.
Vejamos, por exemplo, um caso ocorrido no Paraná nas últimas semanas: o misterioso caso do assassinato do policial militar Rodrigo Federizzi. O assunto tomou as agendas jornalísticas locais especialmente por ter vindo carregado de uma possibilidade intrigante, a de que sua mulher pudesse ter realizado o crime – o que de fato se confirmou.
Na semana seguinte ao crime, um vídeo adentrou os veículos com um “depoimento” coletado pela polícia, no qual Ellen Homiak, a mulher de Federizzi, assume a autoria do crime. O vídeo choca por várias razões – e certamente, se fizermos aquele esforço de reflexão que a ética demanda, conforme afirma Bucci, nenhuma delas parece justificar a veiculação do vídeo pelas empresas jornalísticas.
A começar pelo fato de tudo parece estranho no vídeo. As condições de coleta dessa fala não são esclarecidas – apenas sabemos, pelo que foi apresentado pelas emissoras, que o registro foi “divulgado” pela polícia.
A narrativa do crime
A fala parece coletada numa garagem, de forma improvisada. Entende-se que a câmera esteja prostrada na altura dos ombros da pessoa (um detetive? Um investigador?) que interroga Ellen. Não sabemos quem é este indivíduo, pois só ouvimos a sua voz, mas a sua “mediação” do depoimento de Ellen, é no mínimo, bizarra. Ele basicamente direciona aquilo que a acusada diz, adiantando o tempo todo as suas próximas falas (“e aí, você cortou primeiro e depois serrou as pernas dele? É o saco de lixo que está embaixo da pia? Depois você pegou o tronco?”).
Toda a cena parece incorreta, desencaixada. Lembra um momento do excelente filme dinamarquês A Caça, de Thomas Vinterberg, quando um psicólogo coleta o depoimento de uma criança que está (supostamente) denunciando um caso de pedofilia envolvendo um professor. Em outras palavras, há alguma leviandade pulsante na forma em que o indivíduo filma e entrevista Ellen (novamente: é um detetive? Um investigador? A empresa jornalística não esclarece. Já temos aqui um problema ético).
Mas o maior choque – e, querendo ou não, a grande atração do vídeo – não é o conteúdo do que é narrado (a crueza da morte em seus detalhes), mas sim o estado em que Ellen se encontra. Vemos aparecer ao vídeo um ser humano aos frangalhos, um fiapo de gente, alguém certamente acometido de algum sério problema. E é exatamente o que ela conta, ou tenta contar: o crime foi motivado por uma reação ao fato de que o marido pensava em interná-la, uma vez que não conseguia mais lidar com seu problema de saúde.
Ou seja, há mais complexidade nessa “narrativa do crime” do que julga nossa vã filosofia. Por isso, valeria a pena o esforço para refletir sobre a questão: qual a razão da veiculação do vídeo por várias emissoras? O que ganha o público ao ver esta narrativa mal construída (pois mal mediada, conforme já dito, já que os métodos de coleta não parecem ser dos mais corretos)? O que faz este vídeo além de simplesmente expor, irresponsavelmente, alguém acometido por um severo dano mental?
Creio serem questões importantes, já que contemplam um novo desafio que não só atinge as emissoras televisivas, mas todos os tipos de organizações jornalísticas. Hoje em dia, as imagens que flagram alguma coisa são muitas – e só vão aumentar. Por isso mesmo é necessário discutir o que se fará com estes irresistíveis vídeos que chegam nas redações a todo instante. O risco de não fazer esta reflexão é que as empresas continuem tomando decisões antiéticas com ainda mais frequência.
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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha