Até para quem não é da área de comunicação, não é surpresa alguma que o modelo de negócios da maior emissora aberta do país inclua priorizar seus próprios produtos no âmbito do entretenimento e, sempre que possível, no jornalismo. Então, mesmo leigos percebem que se trata de um merchandising institucional quando Ingrid Guimarães vai ao programa da Ana Maria Braga falar de seu novo filme. Ou quando o logo platinado é mostrado como apoiadora do teatro brasileiro quando, na verdade, se está falando de uma peça específica patrocinada pela emissora. Ou quando ela tem acordos de exibição exclusivos de algum evento musical e, por isso, dá abertura para muitas entrevistas em seu cardápio de programas com os artistas que lá vão tocar, como no Rock in Rio ou show de grandes estrelas em São Paulo, como U2 e Paul McCartney.
É normal, faz parte da sobrevivência institucional de qualquer empresa privada. O problema é quando o jornalismo cultural de uma empresa, que é também jornalística, se resume apenas a entretenimento. Para deixar mais claro: o jornalismo cultural da TV Globo é, por definição e prática, sinônimo de entretenimento. Se uma manifestação artística diverte o grande público, então ela tem espaço na emissora, como a cobertura das Bienais de São Paulo nas quais os repórteres fazem um fala povo com famílias se divertindo entre as obras de arte no Parque do Ibirapuera. Mas mesmo sendo arte que entretém, ela precisa ter, digamos, “volume de mercado”. Não pode ser um novo artista plástico cujas obras estão sendo exibidas ineditamente no Brasil. Precisa ser algo grandioso, uma bienal, um festival de música, uma mostra internacional de cinema de São Paulo – que, aliás, tem menos espaço na emissora que o Festival de Gramado, repleto de celebridades globais (olha o ‘merchan’ aí).
Essa postura não é velada, mas abertamente clara dentro dos corredores da emissora. Em meus tempos de pesquisa para o livro sobre jornalismo cultural, encontrei uma entrevista, dada para o pesquisador da Universidade de Coimbra (Portugal), Ígor Pereira Lopes, em que o diretor geral da TV Globo, Carlos Henrique Schroeder, reconhece que a emissora opta por temas de “entendimento geral”. Ele diz: “um erro comum da área cultural é só cobrir eventos específicos, de pouco apelo e dimensão pequena, o que colabora para manter o tema fora das grandes discussões”.
Contradição perigosa
Mas reside aí uma contradição perigosa. Se a grande mídia não abraça a cobertura de eventos específicos, eles sempre serão de “pouco apelo e dimensão pequena”. Ao optar por divulgar aquilo que já é grande, a TV Globo não só reforça o perigoso sinônimo de jornalismo cultural = entretenimento, como também gira a roda apenas do lado que ela já gira por conta própria. O que é ruim para a própria emissora, pois ao vetar espaço para a vanguarda, para artistas e obras que discutem outras formas de se comunicar, protestar ou pensar o mundo, a empresa só aposta no que, uma hora ou outra, não será mais novo, o que é sempre um risco de audiência e credibilidade. Quantas vezes você, leitor, ou algum parente ou amigo, foi na onda da matéria “cultural” de algum programa da emissora, mas se deparou, no fim de semana, com um “filme chato, mais do mesmo”?
No entanto, há algo ainda mais perigoso em considerar o jornalismo cultural apenas entretenimento. A morte da crítica de arte, pelo menos para quem passa a vida consumindo apenas o que a TV Globo oferece. Para estes, a impressão que fica é que criticar é falar mal, algo completamente equivocado e redutor dentro do trabalho do crítico. São inúmeros os exemplos. Para citar um: o Jornal da Globo, por exemplo, faz matérias sobre mostras ao redor do mundo – nem sempre ao alcance de seu próprio telespectador – como uma mostra sobre o rock em Nova York. Adornando a matéria com músicas e fotos das celebridades roqueiras, tem espaço zero para uma análise mais apurada sobre os critérios da curadoria da mostra, como, por exemplo, o que ficou de fora deste universo musical tão grande quanto é o rock.
São poucos os críticos de arte que possuem espaço na TV Globo. Tenho grande dificuldade em lembrar de alguma cobertura crítica do Nelson Motta em que ele não enviesasse sua análise para o entretenimento, seja música, teatro, cinema ou artes plásticas. A impressão é que “falar mal”, termo fajuto para o ato de criticar com fundamentação, é uma contradição no jornalismo cultural da TV Globo. “Se for para falar mal, é melhor não falar nada”, ouvi, certa vez, de um alto executivo da emissora.
Só que este “falar mal” é, na verdade, fazer o público pensar, ir além do óbvio, refletir sobre sua própria existência, sobre as novidades e vanguardismos da arte, sobre suas oposições, ou mesmo explicitar uma obra que não acrescenta nada de novo. Se a TV prefere o termo “falar mal”, o jornalismo cultural prefere o termo “criticar”, perfeitamente definido pelo crítico Jean-Claude Bernardet: “Criticar é pôr a obra em crise. E pôr em crise a relação da obra com outras obras. A relação do autor com a obra. A relação do espectador com a obra. A relação do crítico com a obra. E criar em torno de uma obra uma rede de palavras incertas, inseguras, hipotéticas, sem a menor esperança nem o menor desejo de chegar ao certo ou a qualquer verdade ou conclusão. Mas com a esperança e o desejo de que essa constelação possa detonar significações potenciais na obra e nas suas relações múltiplas. E sem o menor desejo de convencer, nem o diretor, nem o espectador. Mas problematizar.”
A cobertura cultural da TV Globo parece estar constelações de distância das palavras de Bernardet. Não ignoro o campo minado que é criticar um produto cultural patrocinado pela própria emissora. Mas ao não fazer isso, o entretenimento ganha terreno diante do jornalismo sério. E quando só o entretenimento dá as cartas, ele sacrifica a credibilidade jornalística. Pelo menos o jornalismo cultural, neste embate, tem perdido a batalha a cada novo filme, peça, exposição e show que a emissora decide cobrir.
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Franthiesco Ballerini é jornalista, autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’