A estreia do novo canal de notícias CNN Brasil é uma novidade positiva quando se considera a crise do mercado profissional do jornalismo. O anúncio de que a nova empresa, com redações em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, terá cerca de 400 colaboradores é algo que dinamiza o mercado, inclusive pelo efeito que provoca na concorrência. Mas há outras questões em jogo, cujas respostas ficarão mais claras no decorrer do tempo.
Perguntas sobre as relações societárias e modelos de negócio foram levantadas em reportagens publicadas tanto pela Agência Pública quanto pelo Antagonista. A primeira ecoando declaração do vice-presidente do grupo Bandeirantes, Paulo Saad, de que haveria um projeto político por trás do novo empreendimento. A conta não fecha, avalia Saad, para quem a emissora perderá mais de R$ 300 milhões em dois anos.
A matéria do Antagonista cita a contratação “a peso de ouro” de profissionais renomados e os modernos equipamentos num contexto da mais grave crise da história da TV por assinatura no Brasil, motivada pela concorrência das plataformas de streaming como Netflix, Amazon e outras. Através de estratégias multiplataforma – newsletter, podcasts e outros -, a nova emissora pretende falar com 60 milhões de brasileiros, informa o Antagonista.
Na estreia da nova rede, foi exibida uma grande reportagem mostrando a festa de inauguração no Parque do Ibirapuera com as presenças de políticos, empresários e o time de estrelas do canal. A programação inaugural ainda não permite perceber se a nova mídia abrigará, como foi anunciado na estreia, a pluralidade e diversidade de pontos de vista em sua cobertura, além da isenção – característica sempre mencionada e não alcançada por princípio heurístico.
Mas um ponto parece ter ficado claro na estreia. As relações com o governo serão mais próximas, principalmente se pensarmos na concorrência direta com o grupo Globo. A principal pauta política do domingo foram as relações entre os poderes. No estúdio, William Waack conduziu entrevistas gravadas com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, do Senado, Davi Alcolumbre, e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, além do ministro\ Paulo Guedes.
A “surpresa” foi a entrada ao vivo com o presidente Jair Bolsonaro na porta do Palácio da Alvorada em link do repórter Leandro Magalhães. Depois de ter cancelado entrevista no estúdio, Bolsonaro teria aparecido, meio ao acaso, para falar com o repórter. Houve um evidente descompasso sobre o tom crítico das entrevistas de estúdio e a entrada ao vivo de Bolsonaro, principalmente quando se considera o comportamento do presidente, que partiu para o contato físico com os manifestantes que saíram às ruas em defesa do seu governo – mas também contra os outros poderes e pedindo a volta da ditadura militar. A ênfase se deslocou do apoio presidencial à inconstitucionalidade das reivindicações (pauta da semana passada) para a necessidade de prevenir o aumento de casos de coronavírus diante do estímulo de Bolsonaro às aglomerações populares.
A Globo, no Fantástico, subiu um grau no tom crítico, tanto à manifestação quanto à atitude do presidente. Evidenciou o caráter antidemocrático e inconstitucional daqueles que saíram às ruas, além da irresponsabilidade diante das evidências científicas de que as aglomerações podem trazer um agravamento dos casos de coronavírus no Brasil.
Aspecto evidenciado por Cristina Padiglione no UOL: “Globo dá banho na CNN Brasil ‘no tocante’ à prática do jornalismo”. Cristina cobrou maior ênfase crítica dos apresentadores – Reinaldo Gottino e Monalisa Perrone – durante a entrevista ao vivo de Bolsonaro, enfatizando que o mundo inteiro está adotando medidas similares ao que foi recomendado no Brasil, evitando a aglomeração de pessoas. E também teceu elogios à performance de William Waack nas entrevistas com os poderosos de Brasília, a contundente entrevista de Monalisa Perrone com Ricardo Teixeira e os comentários precisos de Lourival Santana durante o debate de Joe Biden e Bernie Sanders.
Bolsonaro, na entrada ao vivo na porta de casa, parabenizou a CNN. “A gente espera que seja uma imprensa realmente isenta e que produza verdade, o Brasil tá carente de verdades.” No lamentável episódio envolvendo o humorista distribuindo bananas aos jornalistas que fazem seu trabalho na porta do Palácio do Alvorada, em 4 de março, Bolsonaro elogiou a presença do microfone da CNN, informa a reportagem da Agência Pública, e sugeriu um boicote à “mídia que mente”, citando a Folha de S.Paulo e a revista Época. “Pelo que estou sabendo, vai ser uma rede de comunicação diferente aí da Globo.”
Mais do que a pressão presidencial, pesa – ou deveria pesar- sobre a CNN a dúvida sobre o tipo de jornalismo que virá por aí. Ao invés da isenção, espera-se da nova rede autonomia para tratar de forma crítica assuntos que o país precisa enfrentar, muito dos quais envolvendo o círculo do poder da família Bolsonaro. Ainda é cedo para saber como se configurará esse arranjo, mas o fato da Globo ter se posicionado de forma mais crítica em relação às manifestações e à atitude do presidente já é por si só um ganho a favor da diversidade no jornalismo. E o fato do presidente se dispor a responder a perguntas ao invés de dar bananas para os jornalistas poderá ser um sinal de avanço, ainda mais se as perguntas a serem feitas forem não só aquelas que ele quer ouvir, mas as que o país precisa saber.