Nota da Redação – O Observatório da Imprensa acompanhará o desenvolvimento da experiência do Coletivo Blumenau por meio de uma série de textos produzidos por membros do grupo e que visam compartilhar experiências com jornalistas e amadores interessados na busca de soluções para problemas comunitários.
Douglas Henrique trabalha numa cooperativa de crédito. Domina planilhas de Excel, tem intimidade com ferramentas tecnológicas e é entusiasta do transporte coletivo. Ana Paula Dahlke é estudante do primeiro ano de Jornalismo, adora conversar e comunica-se com facilidade em texto e fotografia. Usa ônibus com frequência. Bruno Goulart acorda cedo diariamente para sentar na cadeira de cobrador de um coletivo urbano. Participa de grupos que reúnem colegas de trabalho no WhatsApp e Facebook.
Nenhum destes personagens é jornalista profissional, o que não os impediu de emprestar habilidades e conhecimentos à cobertura de uma crise sem precedentes no sistema de transporte público de Blumenau (SC), no início de 2016.
Os três serviram de fontes ao compartilhar com jornalistas o que sabiam sobre o assunto. Atuaram como jornalistas amadores, porque produziram e publicaram imagens, textos e até gráficos estatísticos que auxiliaram a população a compreender aspectos da história. Ao mesmo tempo comportaram-se como público, já que consumiram informações fornecidas por outras pessoas, profissionais ou não.
Esta condição híbrida, em que um mesmo sujeito desloca-se entre os diversos papéis do ecossistema jornalístico, marca a experiência do Coletivo Blumenau, iniciativa independente em jornalismo colaborativo criada por três editores incomodados com a cobertura da imprensa sobre a crise dos ônibus na cidade. Experimento que cresceu, fugiu ao controle dos criadores e agora engatinha rumo ao projeto de se tornar uma startup jornalística viável.
Como tudo começou
A concessionária que explorava o serviço de ônibus urbanos em Blumenau, chamada Consórcio Siga, entrou em colapso em dezembro de 2015, quando não pagou salários a motoristas e cobradores e teve 25 veículos apreendidos como garantia de dívidas. Uma sucessão de greves e negociações culminou no decreto de caducidade do contrato por parte da prefeitura em janeiro, o que obrigou Blumenau a trocar uma frota de 240 ônibus em poucos dias. Na transição do serviço para a paulista Viação Piracicabana, contratada emergencialmente, a população ficou oito dias sem transporte, período em que dezenas de milhares de pessoas tiveram de locomover-se por conta própria.
O quadro de exceção exigia esforço extra das equipes de jornalismo que atuam na região de Blumenau, mas o que se viu foi uma cobertura dependente de informações oficiais e desconectada das ruas. As dificuldades econômicas não pouparam a imprensa local, que sofre violenta redução das receitas com publicidade – cenário que combina a desindustrialização do setor jornalístico, estrutural e global, com a recessão brasileira dos últimos anos.
Num quadro assim, equipes naturalmente escassas estavam ainda mais enfraquecidas no momento em que os ônibus sumiram das ruas, e o impacto pôde ser percebido na superficialidade do noticiário.
Quando o grupo Coletivo Blumenau foi criado no Facebook, na sexta-feira 29 de janeiro, o assunto esfriara na imprensa. Vácuo que serviu de deixa para a inovação. Curioso é que três jornalistas de impresso tenham se encarregado da tentativa no ambiente digital: Clóvis Reis é colunista do Jornal de Santa Catarina, do Grupo RBS, e professor da Universidade Regional de Blumenau (Furb). Edgar Gonçalves Jr. chefiou até setembro de 2015 a redação do Diário Catarinense, também da RBS, e hoje atua como consultor. Evandro de Assis foi editor-chefe do Jornal de Santa Catarina até agosto de 2015.
A experiência nasce convidando os blumenauenses a relatar o início da atuação da nova empresa de ônibus: segunda-feira, 1o de fevereiro. No método proposto, aos jornalistas envolvidos cabe selecionar as informações relevantes publicadas no grupo, editá-las e transformá-las em conteúdo acabado ao fim do dia. Após filtro, edição e eventual apuração extra, o material passa à página do Coletivo na rede social. Ou seja: os colaboradores interagem livremente na ferramenta “grupo” do Facebook, enquanto suas contribuições alimentam conteúdo produzido por jornalistas na modalidade “página”. Desta forma, diferencia-se o material que passou pela curadoria de profissionais.
Desde o princípio a ideia era abordar diversos assuntos, e não apenas os ônibus, mas o tamanho da crise, entre outros fatores que contaremos mais adiante, nos desviaram da proposta.
Dois mil integrantes
Perto de completar um mês, o Coletivo Blumenau reúne quase 2 mil integrantes. Ônibus estragados, lotados e atrasados continuam sendo assunto entre os colaboradores, mas as postagens na página produzidas pelos jornalistas rarearam. Optou-se por um recuo na frequência e no volume de conteúdo produzido para investir energias na concepção de uma proposta mais complexa, que possibilite maior nível de interação com as pessoas e melhor curadoria de conteúdo.
A experiência no Facebook continua, mas a proposta agora é usá-la como laboratório para algo mais completo, talvez na forma de aplicativo ou outro produto tecnológico que aproxime jornalistas e público. Os próximos passos da experiência vêm aí e seguirão sendo compartilhados em textos como esse. Esperamos que a exposição de erros e acertos abra caminho para novos contatos, ideias externas e, principalmente, sirva de inspiração para outros experimentos Brasil afora.
Se o Coletivo Blumenau se tornará uma alternativa viável de jornalismo local, é impossível prever. Mas quem sabe ao menos o caminho trilhado, e relatado em público, possa ajudar jornalistas de mais cidades a desbravar as potencialidades que a tecnologia oferece para se aprimorar o jornalismo.
Das percepções que compartilharemos a partir de hoje, a mais importante é esta: se há crise no jornalismo, esqueceram de avisar as pessoas lá fora.
Transparência e didatismo
Apesar do parco planejamento, uma decisão intuitiva se mostrou acertada: desde o primeiro dia as postagens direcionadas aos colaboradores prezam pela transparência e pelo didatismo. A palavra “experiência” é repetida à exaustão, admitindo ao público a estratégia da tentativa e erro diante de desafios inéditos para jornalistas habituados à conversa vertical dos meios tradicionais. No Coletivo, a comunicação jornalista-público se dá horizontalmente, em pé de igualdade.
A linguagem informal procura reforçar características de uma conversa, e não de um discurso a ser engolido. Frases curtas, vocabulário que remete à oralidade e pitadas de bom humor, mas sem a afetação de quem usa as redes sociais para caçar cliques.
Logo no primeiro dia os resultados alcançados deram pistas de que seria possível engajar a comunidade na cobertura jornalística colaborativa. Duzentas pessoas entraram no grupo, mais de 100 fotografias e vídeos foram postados e fatos ignorados pela população vieram à tona pelo olhar de colaboradores. Que jornal, rádio ou TV teria condições de espalhar 200 repórteres para registrar o que acontecia nos ônibus, terminais e ruas de Blumenau?
Tal capilaridade proporcionou informações inéditas e com agilidade. Soube-se por meio do Coletivo Blumenau que os ônibus postos em circulação pela Viação Piracicabana tinham, de maneira geral, más condições de manutenção. Portas e elevadores quebrados, sujeira e veículos enguiçados surgiram em fotos e vídeos.
Relatos de passageiros espremidos em ônibus pequenos demais se multiplicaram, enquanto usuários indignados reclamavam do não cumprimento de horários (mesmo que a tabela fosse reduzida devido à condição emergencial do sistema). A riqueza do conteúdo compartilhado chamou a atenção da imprensa tradicional, que passou a replicar imagens e relatos postados no Coletivo.
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Evandro de Assis é jornalista, pós-graduado em Direção Editorial pela ESPM-SP e mestrando em Jornalismo pela UFSC.