Recentemente, pude acompanhar a repercussão no cenário internacional de duas notícias científicas produzidas a partir de pesquisas realizadas por um dos cientistas da universidade na qual atuo, a Universidade do Vale do Taquari (Univates). O monitoramento dessas repercussões permite algumas percepções sobre o fenômeno da circulação de notícias de ciência na mídia internacional – que confronto com outras notícias com as quais vi acontecer fenômenos similares.
A publicação de dois textos no The New York Times abriu portas para que veículos de todo o mundo encontrassem o texto escrito por Kenneth Chang e o escrito por Emily Cataneo e os reproduzissem, copiassem, alterassem e “versionassem” a informação original. Neste caso, ambos os exemplos envolvem a paleontologia, mas o fenômeno descrito é facilmente observável em todas as áreas da ciência, com destaque para a física e a área da saúde em geral.
A primeira reportagem publicada no The New York Times comunicava ao mundo aquilo que os pesquisadores haviam comunicado aos seus pares semanas antes no periódico Review of Paleobotany and Palynology. Tratava-se da identificação da Iratinia australis, uma nova planta cicadácea (ordem Cycadales), ancestral do atual sagu-de-jardim (Cycas revoluta). O fóssil tem cerca de 280 milhões de anos e altera a linhagem desse grupo vegetal, deslocando sua origem para um passado ainda mais distante.
O segundo texto publicado, escrito por Emily Cataneo, narra a ocorrência de incêndios na Antártica há 75 milhões de anos a partir da análise de cartão fóssil, num estudo conjunto entre várias instituições nacionais e internacionais. O estudo foi divulgado na revista científica Polar Research.
Iratinia australis
A identificação de uma nova espécie fóssil é, geralmente, tema de fácil repercussão na internet e a cobertura deste tipo de novidade costuma ser comum. Em relação às espécies de plantas, área de trabalho da paleobotânica, o interesse da grande mídia é menor se comparado aos achados da paleozoologia – sendo os grandes dinossauros verdadeiros fenômenos. No caso da descoberta da Iratinia australis, o acompanhamento subsequente da repercussão revelou que, neste caso, o processo em relação a outros textos reportando descobertas fósseis zoológicas foi o mesmo.
O texto no The New York Times, disponível no site do jornal, foi publicado no início da manhã nos Estados Unidos. Poucos minutos depois começaram as reproduções em outras mídias, fenômeno acompanhado com pesquisas a partir de ferramentas do Google, Twitter e Facebook. No início da tarde, o texto havia chegado a outros veículos de comunicação de massa de países como Índia, Turquia e Argentina. Durante a noite, foi republicado em um veículo de grande porte no Brasil. Ao longo dos dias passaram a surgir manchetes em idiomas como o russo, o árabe, o italiano e o grego.
Apenas o The New York Times teve acesso à fonte primária para a condução das entrevistas, neste caso, dois dos autores do estudo – André Jasper e Rafael Spiekermann. Entre republicações em perfis pessoais em redes sociais como o Facebook e o Twitter, reproduções em diferentes tipos de mídia, o texto conta com cerca de 2000 delas. Em relação apenas aos perfis em redes sociais e sites dos veículos de notícia, são cerca de 380. Boa parte não cita o The New York Times como a sua própria fonte primária.
Fogo na Antártica
Neste caso o tema já havia ganhado certa cobertura nacional, no Brasil, quando chegou ao The New York Times. No veículo o texto foi publicado em um domingo. A jornalista responsável conversou com um dos pesquisadores envolvidos e publicou uma reportagem sobre o tema que rapidamente começou a ser republicada em outras plataformas de comunicação, sites, agregadores de notícias e similares ao redor do mundo. Por ter ido ao ar num final de semana, o alcance foi ainda maior. A notícia se espalhou rapidamente uma vez que aborda um tema que mexe diretamente com o imaginário que as pessoas têm do que é a Antártica atualmente – continente gelado.
Até o momento em que este artigo de opinião é escrito, a reportagem publicada no The New York Times segue sendo aproveitada em veículos de outras partes do mundo – cerca de dois meses depois da publicação original ter ido ao ar. O fato evidencia que o processo de apropriação e reaproveitamento do conteúdo é lento e, a qualquer momento, a notícia, uma vez já tendo ganhado a internet, pode receber novas publicações pois se torna algo “de propriedade da web”.
O que acontece com os textos?
A comparação do que aconteceu nestes dois casos de acompanhei de perto e leituras parecidas com outros fatos que posso fazer, uma vez que sigo de perto o tem, permite estabelecer que os textos foram extensamente aproveitados em outras mídias, gerando um fenômeno de distorção do texto inicial que impacta, também, o fato em si.
Poucos são os jornalistas que têm acesso às fontes primárias nas pautas de ciência e as publicações, ao considerarem diretamente outras fontes e adaptarem as notícias – mudando o título, às vezes para causar mais impacto, por exemplo – acabam gerando resultados pouco fiéis aos fatos expressos no texto original. Este é um aspecto que contribui diretamente para a sensacionalização das notícias de ciência.
Além do não acesso às fontes primárias, muitas vezes o material que ocupou diversos parágrafos no texto original é resumido a dois ou três, sendo as informações condensadas ao extremo.
A mudança das imagens que ilustram as publicações também demonstra que não parece haver um cuidado com a relação entre as imagens do texto originais e aquelas que acabam sendo associadas ao texto, já que grande parte dos materiais produzidos muda as imagens. A partir das imagens, muitas vezes, são adicionados elementos que desvirtuam atributos do fato.
Grande parte dos textos reproduzidos também não aponta a fonte da publicação original, ou seja, o The New York Times – o que pode ser um problema, já que gera uma leitura incorreta de contexto para quem for ler a notícia.
Ambos os textos também foram compartilhados em redes sociais pelos veículos que noticiaram os fatos a partir das publicações do The New York Times; e por usuários das redes, de maneira que se forma um verdadeiro efeito viral, ampliando o alcance da notícia e as possibilidades de aproveitamento por veículos dos mais diversos.
Mudança de postura
Em um cenário de globalização e circulação intensa de informações pela internet não há motivo para tentar combater um fenômeno de apropriação como esse que foi descrito nos parágrafos acima, mas é possível considerar alguns elementos de forma que a qualidade das notícias, neste caso as de ciência, mas não só elas, seja mantida.
Todos os veículos de comunicação do mundo nunca terão acesso às mesmas fontes de informação, mas é possível que todos trabalhem de forma a, se a perspectiva for a de reproduzir um texto de fonte outra, que esta reprodução seja feita com responsabilidade, respeitando a construção da notícia original, a fidelidade ao fato, as imagens e as fontes, por exemplo.
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A RedeComCiência é uma associação apartidária e sem fins lucrativos, criada em fevereiro de 2018, para reunir profissionais interessados em discutir, ampliar, viabilizar e melhorar o jornalismo e a comunicação de ciência no Brasil. Ela é formada por profissionais das áreas da comunicação, divulgadores científicos e cientistas de todo o Brasil.
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Lucas George Wendt é secretário da RedeComCiência.