Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalista é uma “espécie em extinção”?

(Foto: The Climate Reality – Unsplash)

A depender do presidente Jair Bolsonaro, sim! Somos uma “espécie em extinção”. Ele deu a declaração enquanto conversava com apoiadores e jornalistas na portaria do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, no início deste ano. E a polêmica se fez. Tanto que o assunto ganhou visibilidade pelos vários veículos de comunicação de maneira crítica, principalmente entre os articulistas. O texto de Miriam Leitão, em sua coluna dominical do jornal O Globo, do dia 12/1, demonstra: “O presidente queria ser um exterminador da imprensa crítica, aquela que incomoda, esclarece, investiga”. E o de Jânio de Freitas, no mesmo dia, na Folha de S.Paulo, constata: “A satisfação de Jair Bolsonaro com a ideia de que ‘jornalistas são uma espécie em extinção’ não é egoísta. Acaricia certo sentimento de incontáveis ressentidos”. A Associação Brasileira de Imprensa, ABI, repudiou a situação em nota oficial na qual enfatizou que, enquanto a informação for uma “necessidade vital nas sociedades modernas”, o jornalismo continuará existindo. “E, com certeza, sobreviverá por mais tempo do que políticos inimigos da democracia, que, estes sim, tendem a ser engolidos pela história.”

Bolsonaro disse também em tom constrangedor que quem não lê jornal não está informado, e quem lê está desinformado. “E que é preciso mudar isso”. Só que a solução proposta e improvisada pelo presidente no contexto foi o de vincular os jornalistas do Brasil ao Ibama. Ao que o mesmo Jânio de Freitas rebateu: “A gracinha da citação ao Ibama, tão desumorada, tem a ver com a vocação de Bolsonaro para o atraso, para o passado menos digno. Com o Ibama, traz de volta, sem saber, o tempo do jornalismo pendurado às escondidas nos cofres públicos.”

Calcado em sua verborragia conhecida teceu mais algumas generalizações e aproveitou a ocasião para anunciar uma medida. “Cada vez mais gente não confia em vocês. Eu cancelei todos os jornais no Planalto, todos. Não recebo mais nem jornal, nem revista. Quem quiser, que vá comprar. Porque envenena a gente ler jornal, a gente fica envenenado.”

Carreira vulnerável

Não com as mesmas intenções expressas pelo presidente, mas alguns estudiosos também consideram que o jornalista e a profissão caminham para o desaparecimento. É o caso do professor e escritor Bernardo Kucinski. Ele escreveu uma carta a um hipotético arqueólogo há cinco anos em que aponta algumas de suas razões para explicar por que o perecimento está se dando de modo sutil, imaterial e por processos diversos. Entende que um dos motivos está diretamente ligado à conivência dos próprios jornalistas, pois ao invés de defender o interesse público, dedicam-se mais a melhorar a imagem ou tentar preservar objetivos não muito transparentes de grandes empresas, de grupos de interesse, governos e políticos. Kucinski diz que outros jornalistas colaboram para que isso ocorra ao usar elementos de fatos para criar todo um enredo, mais envolvente e dramático e, assim, não investigam nada, nem comprovam, nem ouvem os lados envolvidos num episódio para relatá-lo com verossimilhança. Muito menos estudam e pesquisam os temas sobre os quais escrevem. Segundo o professor, também jornalista, existe um outro ponto que tem contribuído para que a profissão seja extinta. Muitos profissionais usam uma linguagem insultuosa e arrogante, adjetivada, “rococó”, muito distante daquela clássica do jornalismo, que deve ser objetiva e econômica e, na qual, os fatos devem estar adequadamente hierarquizados e contextualizados.

Para além das opiniões, os dados também não são nada favoráveis ao jornalismo e aos jornalistas. É o que aponta um estudo do site CareerCast, publicado no portal Exame, em que a profissão repórter de jornal era classificada como a mais desfavorável de 2017. O ranking reúne 200 ocupações em diversas áreas de atuação, com base em métricas como renda, oportunidades de ascensão, ambiente de trabalho e estresse. Os dados se referem ao mercado de trabalho nos Estados Unidos. O levantamento destaca um outro ponto negativo para o segmento. A segunda pior profissão daquele ano também era no setor de mídia: a do apresentador de televisão ou rádio. De acordo com a pesquisa, a presença das duas profissões no topo do ranking diz respeito à crise financeira que abala a indústria da mídia há anos. Com a queda nas receitas com a publicidade, jornais, revistas, rádios e emissoras de TV oferecem menos vagas de emprego e remuneração mais baixa. Outra informação preocupante no levantamento demonstra que as profissões estão também entre as 13 piores carreiras quanto às perspectivas de crescimento profissional até o ano de 2022, com queda de 8% e 9% respectivamente.

Outro estudo, denominado “Carreiras vulneráveis: uma análise das demissões da mídia como um ponto de inflexão para jornalistas”, desta vez realizado aqui no Brasil, mais especificamente em Porto Alegre (RS), coordenado pelas pesquisadoras do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFRGS, Liana Haygert Pithan, Marcia Cristiane Vaclavik e Andrea Poleto Oltramari, identificou o complexo contexto em que ocorrem as demissões coletivas no setor, e que vai além das crises financeiras. Diante das transformações na indústria e no fazer laboral e dos abalos na legitimação da atividade como função social, os jornalistas submetidos ao processo demissional estão em meio a uma conjuntura de múltiplas implicações, que afetam suas percepções sobre profissão e carreira. E elas não são nada boas.

Quem quer ser jornalista?

Com tantas condições contrárias a circundar o profissional e o jornalismo, e diante da expectativa sobre uma carreira considerada passível de não sobreviver, é possível ainda pensar pela pergunta delicada, mas necessária, se haverá quem queira ser jornalista hoje em dia?

De acordo com o relatório “Emprego dos Sonhos?”, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) durante o Fórum Econômico Mundial, que apontou as dez carreiras mais buscadas por jovens de 15 anos em 79 países e regiões – foram entrevistados aproximadamente 600 mil jovens em 2018, durante a participação no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) –, inclusive o Brasil, o jornalismo não foi apontado entre as 15 profissões pretendidas para o futuro pelos participantes.

Por outro lado, a depender do Grupo Comunique-se, ainda existe esperança para o jornalismo. Nacionalmente conhecido por manter o maior mailing de jornalistas do Brasil, o Grupo é considerado o espaço que reúne a maior comunidade da imprensa, com mais de 55 mil profissionais do setor – distribuídos em mais de 100 editorias e subeditorias, espalhados em 10 mil veículos de comunicação em todo Brasil, desde grandes jornais consagrados até os de pequeno porte com redações menores –, seus representantes apontam que o jornalismo não está em extinção, mas em constante renovação. O Comunique-se reconhece que os veículos impressos estão sendo descontinuados, mas os jornalistas se reposicionaram em portais, blogs, assessorias – de imprensa e de comunicação –, e até canais no YouTube.

No cenário internacional é possível perceber que mesmo diante das adversidades, há um grupo de profissionais remanescentes que mantem a esperança. É o caso, por exemplo, do jornalista e escritor americano nascido no México, Jorge Ramos. Ele diz que apesar das enormes mudanças tecnológicas, nada pode substituir um jornalista que faz perguntas firmes, que separa o que é relevante do que é lixo e, sobretudo, questiona os que detêm o poder: “Isso nenhum aplicativo de celular pode substituir”. Apontado o âncora de notícias em língua espanhola mais conhecido nos EUA, Ramos considera que o jornalismo não vai desaparecer, pois sempre existirá a necessidade de que se denunciem os abusos dos que detêm o poder, o que é a principal responsabilidade social do bom profissional e o temor das autoridades. Especialmente, ditadores. Segundo Ramos, diante do novo cenário de turbulências e complexidade, os jornalistas são mais do que necessários por cinco motivos: credibilidade, independência, relevância, informação em contexto e desafio aos governantes.

A jornalista Patricia Bernal destaca que, para sobreviver, o profissional deve antes de se posicionar como jornalista ou criador de conteúdo e pensar no mercado, olhar para dentro de si e refletir sobre coisas que façam sentido para ele, e não simplesmente porque é uma oportunidade. “Isso é a nova economia que está mudando completamente a forma como pensamos o trabalho e a carreira”. Portanto, na opinião da jornalista, é preciso parar, pensar, olhar para si, e acreditar que o jornalismo pode mudar, se reinventar, e ser um contribuidor importantíssimo para as sociedades do futuro, como já foi um dia.

Perguntas podem evitar a extinção?

A resposta é complexa. Ou provavelmente não seja possível respondê-la. O filósofo René Descartes, em seu clássico livro “Discurso sobre o Método”, trata da dúvida sistemática, conceito que estimula o ceticismo, aqui entendido no sentido de questionar, ou seja, perguntar para se atingir uma possível verdade racional. O escritor William Zinsser, em “Como Escrever Bem”, aconselha que aprender a fazer perguntas que provoquem respostas sobre o que há de mais interessante e intenso em sua vida é o que vale. Habilidade dos curiosos, a arte de fazer perguntas certas era a característica central da filosofia socrática, denominada como maiêutica. No caso do jornalismo, são as perguntas bem feitas que permitem compreender as ocorrências da realidade cotidiana e transformá-las em informações de qualidade para a sociedade. É por meio dos questionamentos, que aflora o entendimento detalhado de determinados pormenores que passam despercebidos normalmente pelas pessoas. Assim, é possível formular alguns que envolvem a realidade jornalística. Como os apresentados abaixo.

O jornalista é – ou será –, além de curioso, o que tem postura de marketeiro, planeja como um storyteller, age de maneira persuasiva, faz e acontece? Os bons profissionais de imprensa serão aqueles que demonstrarem atitude de procurar e saber por que outras pessoas fazem o que fazem? Jornalistas são os que em vez de ter certezas, tem que perguntar mais e mais? Quantos jornalistas mostram a cara, falam com seu público, trocam ideias? O jornalismo deveria ser visto e estruturado como um negócio social – que dá lucro, mas que se preocupa mais com a transformação social do que com o retorno monetário em si? Profissionais estão e vão permanecer cada vez mais envolvidos em projetos especiais, em locais diferentes, com base em home office ou around the world? A ideia de uma formação multimídia é o que o atende a quem pretenda seguir a carreira diante da enorme turbulência que define o período? Que tipo de representação profissional é ou será necessária para resguardá-lo perante as agressões e desrespeitos a que está exposto?

Por mais que sejam pertinentes, elas muito provavelmente não conseguirão responder à inquietação presente no micro conto escrito pela jornalista e doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília, Rafiza Varão, “Relato de um extinto”, em que num suposto mundo de 2054, o último extinto (autor da missiva) escreve uma carta em que lembra, ainda com espanto, “de ler que estávamos em extinção. Me perguntei: como, se estou aqui e, junto a mim, tantos outros? Continuo aqui. Os outros, já não sei por onde andam. Fomos nos perdendo nessas três últimas décadas. Às vezes, de olhos fechados ou abertos, penso neles, quando ainda chamávamos o que fazíamos de notícias e jornais ainda existiam”. E torce para que quando “esta carta, nesta garrafa, chegar até aí do outro lado, a vida seja diferente do que ela se tornou onde estou. Que aí ainda haja jornalismo e jornalistas. Éramos necessários.”

Do relato fictício para a realidade presente não há como deixar de considerar que o jornalismo brasileiro está em estado de coma, como diz Jânio de Freitas. E o mundo político se aproveita da vulnerabilidade do momento. Por isso ele alerta que impor a subserviência ou o silêncio do jornalismo é parte essencial do plano de Bolsonaro, e dos seus aliados fortes, para moldar o país à ignorância cascuda e antidemocrática que nos é mostrada por Damares, Weintraub (ex-ministro da Educação), Ricardo Salles, Onyx, e demais reproduções miniaturizadas da nulidade humana com status de Presidência. Portanto, enfatiza, Jânio, “não enfrentar esse plano já é uma espécie de extinção”.

___

Referências

BERNAL, Patricia. O futuro do jornalismo. Portal O futuro das coisas. 30/12/2017. Disponível em: https://ofuturodascoisas.com/o-futuro-do-jornalismo/

DE FREITAS, Jânio. Uma espécie de extinção. Folha de S. Paulo: 12/1/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2020/01/uma-especie-de-extincao.shtml

GASPARINI, Claudia. Estudo revela qual é a pior profissão do ano; veja o ranking. Portal Exame: 7/05/2017. Disponível em: https://exame.com/carreira/estudo-revela-qual-e-a-pior-profissao-do-ano-veja-o-ranking/

GRUPO COMUNIQUE-SE. Jornalistas estão em extinção? Portal Comunique-se: 17/1/2020. Disponível em: https://www.comunique-se.com.br/blog/jornalistas-estao-em-extincao/

KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo, profissão em extinção. Agência Carta Maior: 15/02/2006. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia-e-Redes-Sociais/Jornalismo-profissao-em-extincao/12/9368

MARCONDES, Dal. Que perguntas o jornalista deve responder? Portal Observatório da Imprensa: 14/4/2015. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/que-perguntas-o-jornalista-deve-responder/

PITHAN, Liana Haygert; VACLAVIK, Marcia Cristiane; OLTRAMARI, Andrea Poleto. Carreiras vulneráveis: uma análise das demissões da mídia como um ponto de inflexão para jornalistas. Cad. EBAPE.BR vol.18 no.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 2020. Epub. 17/4/2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1679-39512020000100158&script=sci_arttext#aff1

VARÃO, Rafiza. Relato de um extinto. Portal Imprensa: 28/01/2020. Disponível em: http://portalimprensa.com.br/imprensa+educa/conteudo/83138/opiniao+relato+de+um+extinto+por+rafiza+var

***

Boanerges Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de livros, doutor e mestre em Comunicação pela UFRJ e Umesp.