Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Por um jornalismo que restabeleça o humanismo pelo diálogo

(Foto: Observatório da Imprensa)

O jornalista Alberto Dines foi profético quando em novembro de 1998 registrou no artigo “Por um jornalismo humanista”, publicado pela Folha de S.Paulo: “O modelo de jornalismo praticado no Brasil está esgotado. Autoinfectou-se, carece de antídotos autógenos. É um gigantesco faz-de-conta, armação joco-séria (como as tragicomédias de Antônio José da Silva no século 18). Profissionais imaginam-se livres, empresas jornalísticas fingem imparcialidade. Arrogância, onipotência e, às vezes, perversidade escondem-se atrás de um pretenso senso de justiça que não resiste a qualquer avaliação mais profunda. Com as honrosas e raras exceções.”

Por mais paradoxal que pareça diante de inovações que impulsionam a área, o problema que mantém a reflexão de Dines atualíssima é justamente o que aponta não só para a impossibilidade de se identificar qualquer mudança significativa no contexto, mas pela dificuldade cada vez maior de se detectar as tais exceções quando se trata da mídia tradicional. Basta tomarmos como exemplo a participação do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, no Programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido no dia 6/7, em que é possível identificar em um dos trechos da entrevista, o denominado xis da questão que afeta o jornalismo na atualidade, quando vem à tona diante da bancada de entrevistadores, pelas próprias palavras do ex-ministro da Educação nos governos de Lula e Dilma, o desabafo: “Sou o brasileiro vivo que mais tempo passou à frente do MEC. Como é que caem três ministros da Educação e eu não sou chamado para opinar sobre isso?”

Locupletemo-nos todos!

Dines dizia naquela ocasião que o sistema mediático, viga mestra do processo democrático, converteu-se num pêndulo de clonagem e canibalismo, no qual todos se copiam e todos se digladiam. Enfatizava que a concorrência não buscava a pluralidade, a diversidade ou a qualidade, mas a anulação desta pela reiteração. Ressalvava, no entanto, o papel das honrosas e raras exceções. A frase irônica de outro jornalista de destaque na realidade brasileira, Stanislaw Ponte Preta, é propícia aqui ao ilustrar o possível comportamento geral de profissionais de imprensa em circunstâncias contemporâneas, aliviando “as honrosas e raras exceções”: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!”.

No texto escrito por Dines, o salutar ceticismo filosófico se converteu em perigosa certeza jornalística — o que também não é difícil de observar em produções de pautas, entrevistas e nos comportamentos de vários veículos e profissionais de imprensa na atualidade —: todas as suspeitas são fundadas, todos os suspeitos, culpados. Segundo o idealizador e ex-coordenador deste Observatório, impera a ambiguidade, pois todos estão numa espécie de vala comum, em que a humanidade se conduz sem crédito. Portanto, no entendimento do jornalista, se impunha um simulacro de justiça — sem ritos, prazos, normas. Intui-se, assim, que pensar em uma aproximação entre passado e presente significa deduzir que se as redações e suas rotinas não conseguem dar as respostas necessárias que atendem ao interesse público quem se dana é o leitor, ouvinte, telespectador ou internauta?

Sem antecipar a resposta, cabe de imediato o encaixe de uma outra pergunta: O que nos possibilita de concreto as ponderações gerais expostas por Dines? Podemos buscar indícios de um possível entendimento no que o mestre em Política de Ciência e Tecnologia e doutor em Sociologia pela Université René Descartes, Paris V, Sorbonne e pós-doutor pela University of Alberta e McGill University, no Canadá, André Lemos, expõe no prefácio publicado no livro “Esfera pública, redes e jornalismo”, sobre a comunicação delineada nos últimos tempos por acentuada mudança. Lemos lembra que, na era “massiva”, não havia diálogo e nem troca de papéis entre emissor e receptor. Com isso, as informações chegavam ao público de maneira direcionada e sem possibilidade de participação. E o que predominava na relação entre públicos e meios de comunicação era algo do tipo “fala que eu te escuto” em condição unidirecional e mínima possibilidade de interação. Posteriormente, com o estabelecimento definitivo da internet e amplitude da interatividade, novos canais se formam no processo informativo. O que estabelece, segundo o autor, condições de diálogo e de conversação. Situação que passa a exigir ainda mais qualificação do jornalista para oferecer um olhar diferenciado sobre a conversa já existente — inclusive e, principalmente, entrevistas — e, até mesmo, selecionar, entre tweets e likes, as informações corretas, enfatiza.

Existe caminho para o futuro?

O jornalismo, assim como outros conhecimentos de autoprodução humana, se constitui sob bases dialógicas. Isso porque a curiosidade de conhecer algo leva à pergunta, e, por conseguinte, à investigação e ao outro que pode auxiliar neste processo de construção coletiva de formulação de um saber. É o que garante a pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, Juliana Freire-Bezerra. Segundo ela, o diálogo sempre foi o método que sustentou o fazer jornalístico, mas que andou um tempo distorcido ou subutilizado. Juliana reforça que necessariamente é preciso recuperar sua relevância na sociedade contemporânea, tendo a potencialidade de contribuir para o aumento da consciência crítica e cidadã de toda a sociedade.

O ponto central da discussão que impulsiona a ideia do diálogo como possibilidade revigorante do jornalismo na atualidade faz destacar-se o respeito pela vida, ou seja, o que leva a construção de um possível entendimento em que os humanos são seus participantes vivos. Ou seja, o tecido dialógico (expressão cunhada pelo filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin) permeia tudo que existe, o que bem ordenado provoca a consciência acerca das dificuldades e necessidades básicas de sobrevivência atuais.

Para o jornalista português Vítor Belanciano, o imprescindível para uma prática jornalística hoje é pensar, fazer ligações não previstas entre assuntos, agregar, ter a capacidade de refletir, se possível na companhia de outros. A professora e pesquisadora Cremilda Medina aponta, especificamente, que a entrevista carrega em si vícios de origem que tendem a negar o diálogo possível e torná-la uma técnica autoritária, tanto no Jornalismo como nas Ciências Sociais ou até no consultório médico. E mesmo que se desconstrua o que ela denomina como dirigismo do processo — Pergunta e Resposta —, ainda assim, a entrevista — seja ela feita de maneira presencial ou digital — permanece limitada ao código linguístico relatorial ou científico.

Medina explica que para se atingir verdadeiramente os protagonistas e seu contexto social, é preciso estabelecer outro aparato de aproximação, o da observação-experiência. E reconhecer que “falta rua” — o que nesse período a distanciou mais ainda por motivos óbvios — na vida dos comunicadores. Afinal, diz Medina, a rua não entra “nos ambientes fechados e eletrônicos com seus cheiros, paladares, gestos, palavras poéticas e escutas desarmadas ou olhares coletivos e contraditórios, pois os cinco sentidos que dão o sinal inteligente para a captação do real, ainda não passam pelas máquinas”.

A professora destaca que o encontro dialógico também traz à escrita (não importa em que suporte) a fala viva da língua, a que está presente na poética e não no código racional/conceitual. É preciso, então, que a narrativa jornalística procure unir um narrador ou narradores para compor a cena coletiva de ação, além de pinceladas de intuições sintéticas e ideias abertas. O que não deve desprezar de maneira alguma, o trabalho de campo — um tanto complexo de ser cumprido em tempo de pandemia, ou seja, o exercício da reportagem —, que exige preparo anterior, disponibilidade e encantamento nas relações e mais a sensibilidade criativa para finalizar boas edições.

É preciso que surjam criadores em busca permanente do conhecimento e da transformação do real — com todo o cuidado para não se desviar em direção ao ficcional —, e não apenas de cumpridores de rotinas jornalísticas. Profissionais que perpassem teoria e prática e expressem vozes coletivas. Só assim, talvez possamos chegar de maneira concreta a descobrir que podemos ultrapassar as tais exceções apontadas por Dines, aqueles parcos amigos competentes, e acreditar nas distinções, bem como combater as generalizações e o nivelamento por baixo. Ou seja, considerar como o grande desafio, a busca efetiva pelo exercício de um jornalismo humanista. Portanto, com base no verdadeiro diálogo.

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Referências

DINES, Alberto. Por um jornalismo humanista. Caderno Ilustrada: 21/11/1998. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq21119828.htm

Freire-Bezerra, J. “O diálogo potente no jornalismo: pensando a interatividade em seu viés pedagógico”, RAEIC, Revista de la Asociación Española de Investigación de la Comunicación, vol.7, núm. 13, 99-117, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.24137/raeic.7.13.5

LEMOS, André. Prefácio: Nova esfera conversacional. Esfera Pública, Redes e Jornalismo (vários autores). Editora E-papers: 1° edição, 2009. Disponível em: https://www.e-papers.com.br/sumario.asp?codigo_produto=1760

MEDINA, Cremilda. Jornalismo e compromisso social: a arte do diálogo e das vozes plurais em Cremilda Medina. Entrevista realizada em 10/10/2017. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/ancora/article/view/40090/20128

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Boanerges Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de livros, doutor e mestre em Comunicação pela UFRJ e Umesp.