Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Repórteres, ouçam o que estão falando alto nas mesas dos botecos

Texto publicado originalmente no blog do jornalista Carlos Wagner.

Chico Buarque e o jornalista Tarso de Castro em um bar, no ano de 1973. (Foto: Instituto Antônio Carlos Jobim)

Longe dos registros da história oficial do Brasil, as conversas das mesas dos botecos fazem parte do modo de vida do brasileiro. E o conteúdo das conversas mostra a versão dos bêbados sobre as coisas que estão acontecendo naquele momento. Nos tempos do Regime Militar (1964 a 1985), a conversa se iniciava em tom baixo para evitar que caísse nos ouvidos dos agentes do regime. E o tom aumentava na medida em que as garrafas de cervejas e os martelinhos de cachaça vazios se empilhavam nas mesas. No final da noite, até uma música, cantada a todo o pulmão, proibida pelo censura, saía. Esse momento é lembrado em música cantada por Chico Buarque chamada “O Que Será”. Em um dos versos, pergunta “o que será que estão falando alto pelos botecos”.

A conversa de boteco foi, e sempre será, um pilar importante na formação do repórter. Ali gente envolvida em várias profissões se dá o direito de falar sem temer as consequências, portanto há relatos muito próximos à verdade dos fatos. Saber ouvir e avaliar os conteúdos das conversas é um belo exercício para a formação do jornalista. Nas palestras que faço sobre a formação do repórter nas redações de jornais, rádios, sites e TVs e em salas de aula das faculdades de jornalismo, eu sempre reservo um tempo para alertar sobre a importância do que se fala nas mesas dos botecos.

A minha geração — tenho 67 anos, 40 como repórter investigativo — foi lapidada nas universidades. Mas aprendemos jornalismo nas mesas dos botecos, conversando com os repórteres mais velhos. Lembro que ali aprendi que um lide — a maneira como se abre uma matéria — não pode ter mais de cinco linhas. Tem que ser direto e mostrar ao leitor que o assunto diz respeito ao cotidiano dele.

Lembro que, certa vez, no final dos anos 70, eu estava bebendo em um boteco com os repórteres do Coojornal — jornal alternativo da extinta Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. Já tinha tomado tantas cervejas que estava com a visão duplicada. Fechava um olho para ver direito as coisas. No meio da conversa, alguém fez um comentário sobre uma crônica feita por um repórter sobre um filme. Um dos editores do Coojornal, que usava um óculos que faltava uma lente, disse uma coisa que foi importante para minha carreira. Ele disse: — O que interessa para o leitor o que ele pensa sobre o filme?

Sempre que deixo de lado as informações para dar ao leitor a minha opinião particular, eu penso sobre o que ouvi naquela mesa de boteco. Como repórter, eu sempre viajei muito em busca de histórias para contar ou envolvido em coberturas. Em todas as cidades em que estive, sempre fui ao boteco ouvir as conversas. E, muitas vezes, virei uma matéria — virar a reportagem, no jargão das redações, é descobrir uma informação nova relevante — ouvindo o que se falava na mesa vizinha a minha.

Lembro que, em 2006, um surto de febre aftosa estava destruindo os rebanhos de gado nas cidades de Japorã, Eldorado e Mundo Novo, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, região complicada para jornalista trabalhar. Havia repórteres de várias partes do mundo. Em uma noite, em um boteco de Eldorado, eu ouvi um relato muito detalhado de um fiscal paraguaio, sobre como tinha começado o surto da aftosa, para um funcionário do Ministério da Agricultura (MA) do Brasil.

No dia seguinte, eu fiz alguns telefonemas para saber se o que tinha ouvido não era apenas conversa de bêbado. Não era. Daí foi só fazer a matéria. Dias depois, o funcionário do MA me perguntou como eu tinha conseguido aquelas informações. Eu respondi: — Fontes!

Vejamos os dias atuais. O repórter vive conectado 24 horas ao que acontece no planeta. E as notícias dão a volta ao mundo em uma velocidade espantosa. Em um ambiente assim, as informações exclusivas têm um imenso valor. Um dos endereços da exclusiva é o boteco. Lembra que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, o homem que denunciou duas vezes por corrupção o presidente da República, Michel Temer (PMDB – SP), foi fotografado em um boteco no Rio de Janeiro? Claro, é raro encontrar uma fonte do quilate de Janot andando pelos botecos.

Mas os assessores, que vivem ao redor de fontes importantes, ouvem os seus comentários particulares, andam pelos botecos e, geralmente, gostam de conversar com os amigos sobre os seus chefes para mostrar que são importantes. É nessa hora que temos que ter o ouvido apurado. É importante o repórter conhecer a geografia dos botecos, principalmente em centros de decisões políticas e econômicas do país, como Brasília (DF) e São Paulo (SP). É ali que as coisas acontecem.

Também tem os botecos de jornalistas. É ali que muita gente vai para saber o que andamos falando. Não é difícil descobrir. Nós temos o costume de discutir gritando. Dentro do atual momento político e econômico do Brasil, nunca se falou tão alto nos botecos como hoje. Basta ter um bom ouvido.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, entre eles “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017.